Bordas da ausência
Erica Magalhães e Nathan Braga.
Projeto de curadoria e pesquisa
Galeria Aymoré, RJ/BR
Mar. 2020
Texto Curatorial
Memórias. Lembranças. Vestígios. As peças aqui reunidas, de autoria da artista mineira Érica Magalhães e do carioca Nathan Braga, traçam um rastro narrativo cuja origem parte de suas experiências no mundo. A experiência do corpo em uma existência sempre precária marca nos gestos cotidianos vestígios do que outrora se constituía enquanto presença. Composta por camadas de sentidos e imagens provenientes de etapas passadas, sejam estas vividas ou narradas pelos outros, a memória forma, assim, o seu repertório sensível. Frutos de rememorações exultantes ou traumáticas, as obras, no entanto, não se fecham a uma única história. A fissura da significação se abre ao outro, que visa completar os signos com suas próprias questões. Entre a imponência da concretude e a desaparição incômoda, os materiais que formam os objetos presentes apontam para a constituição de um sentido cujo lugar é fincado em uma ausência fúnebre.
Ainda que tenham construído um léxico material e processual particular, a obra de ambos se encontra no desejo de realizar uma dilaceração do sentido. Por meio de uma intermaterialidade, o duo concreto e porcelana, constantemente discutido na produção de Érica, corresponde à transgressão proposta pela aproximação da naftalina com o mármore, presente nas obras de Nathan. Produz-se, assim, um novo campo de significações onde a estabilidade se mostra um absurdo. O sentido torna-se nada mais do que a relação entre matéria e sintoma, relacionados de uma forma dialética na qual se cruzam os desejos do artista e a subjetividade do espectador. É nesse entre-lugar, mediado por materialidades ambivalentes, que o duplo olhar da ausência presentificada pelas relações entre permanência e desaparição se constroem. As frágeis porcelanas que emergem dos blocos de concreto de Érica e os simulacros fadados à sublimação de Nathan realizam feridas não apenas no sentido, mas também no encontro com o outro.
Bordas da Ausência se propõe a pensar sobre a efemeridade que se impõe ao que nos ronda, em sua corporificação marcada por uma supressão desvelada. Tomando a falta como uma questão, ela se transfigura em matéria em cada um dos trabalhos selecionados, mas de forma diferente: torna-se pesado e imponente concreto ou efêmera e incômoda naftalina. A presença das obras neste espaço arquitetônico é feliz, pois nos lembra os escombros dos antigos casarões da Villa Aymoré, atualmente restaurados, dos quais um destes ergue-se esta galeria. Enquanto o trabalho de Érica nos recorda que muitas histórias deste e de outros lugares permeiam as estruturas do que nos rodeia, Nathan denuncia a brevidade da pretensa suntuosidade que reveste o cotidiano. Trabalhando a partir de memórias impossíveis de serem localizadas em um único lugar, ambos os artistas buscam elaborar o passado não de modo a cultuá-lo, mas a ativar no outro uma exigência de análise que possa lançar luz sobre o presente.
Sobre Érica Magalhães
Os resquícios construtivos de Érica Magalhães, ainda que deixem emergir bibelôs antigos ou criem um sítio arquitetônico sublime, demarcam memórias de espaços já inexistentes, cujo rastro não apagado deseja contar histórias de outros tempos. Valendo-se de materiais recorrentes em construções de edifícios, como cimento, vergalhões e pedras, a artista os aproxima de objetos intrinsecamente frágeis, como porcelanas e vidros. Eles atuam no jogo de forças entre matérias brutas e singelas, que, por vezes, parecem alternar suas propriedades em recusa a uma categorização dicotômica simples. O limiar construção/desconstrução, presente na primeira fase da artista, questiona, por conseguinte, a intenção do fazer artístico e seu produto simbólico. Enquanto o gesto por excelência de Érica parte da construção formal, elaborando suas peças a partir da montagem de elementos díspares e não por meio da apropriação de partes de edificações, o resultado evoca um imaginário nos quais a ruína é a protagonista. Um dos bibelôs que integram as obras, ironicamente, é proveniente da cidade alemã de Dresden, bombardeada durante a Segunda Guerra Mundial. Os olhos da boneca não mentem: os escombros que a tomam agora não se distinguem muito do que vira naquele dia. As porcelanas soterradas em concreto desafiam o outro com seus relatos, cujas inscrições em si dão pistas do seu percurso.
Trabalhando com formas e processos que lembram a produção em série, Érica evoca a memória de outros movimentos artísticos, como o Minimalismo americano, cuja pretensão era criar objetos específicos que não remetessem a nenhum sentido externo ao que fosse apreendido na experiência do corpo e do olhar. A artista, no entanto, produz uma dobra nessa tradição, inserindo desenhos pessoais aos cubos de concreto ou, ainda, incorporando à massa artigos dos quais se apropria. Estes carregam consigo memórias e afeições estéticas que permitem ao espectador a possibilidade de tecer suas próprias ficções através dos elementos presentes nas obras. Seus trabalhos não aludem à construção seriada de monumentos arquitetônicos, mas, antes, ao processo erosivo ao qual a formação construtiva é fadada a sucumbir, tanto no campo físico como no simbólico. Há, por fim, um resíduo desejante de antropomorfia na produção mais recente da artista. Suas Bonecas, recordam um corpo humano cuja altura toma de empréstimo a da criadora. Construídas de maneira modular, cujo rearranjo é capaz de formar diferentes combinações e, assim, dar vidas a outras bonecas, elas reproduzem um pensamento arquitetônico construtivo, do qual o todo é formado a partir da composição de partes autossuficientes.
Sobre Nathan Braga
Nathan Braga, em seu uso constante do mármore e da naftalina, tensiona a estabilidade das obras em sua permanência, já que elas perigam desfazer-se antes do fim de seu período expositivo. Sua produção coloca uma presença onde a iminência do desaparecimento se impõe graças às propriedades químicas da naftalina, reservando aos materiais com que se relaciona uma completa instabilidade. A angústia desvelada nos trabalhos do artista origina-se de sua pesquisa acerca de experiências pessoais, pontuadas pela falta da mãe. Ainda que suas peças sejam atravessadas de subjetividade, o branco opaco que envolve a maior parte delas revela um ensejo iconoclasta, a recusa da formação da imagem. Entretanto, estas são compostas à revelia por meio da criação simbólica evocada pelos signos. O autorreflexo, porém, se faz presente na série “Para levantar a cabeça do que aqui repousa”, onde formas em latão remetem à tradição fúnebre egípcia, na qual os mortos eram exumados acompanhados de mobiliários que assentavam suas cabeças. A recorrência do memento mori na produção de Nathan constitui-se enquanto alegoria a partir da forma e do signo. Curiosamente, esta última palavra, em grego (sema), tem como significação primeira o substantivo túmulo, nos lembrando que a construção de imagens perpassa sempre uma ausência mortificante do enunciado.
Segundo o artista, a busca pela mimese da mimese rege a primeira fase de sua produção. O simulacro, ou seja, a aproximação de elementos que possuem uma semelhança formal, mas qualidades físicas díspares, aponta em suas obras um apreço pelo falso. Frequentemente o mármore, matéria escultórica que busca perpetuar-se na eternidade, relaciona-se com a naftalina, substância química com propriedades sublimatórias. No entanto, o tempo, que permitia distinguir as especificidades de cada material, revela outra coisa: que nenhum dos dois signos é aquele que fora anteriormente. Em vez de promover um choque de disparidades, a justaposição equipara os elementos naquilo que os torna próximos: o estado de repelência. Enquanto o odor da naftalina causa um estranhamento em qualquer corpo pulsante, o mármore evoca a sedução sublime da morte. A impotência da matéria bruta, lançada ao devir, cujas lápides que recobrem duram mais do que aquilo que guardam, funde-se à debilidade do material químico, que não consegue permitir-se uma completa presença. Este último guarda, ainda, no outro, uma dupla reação: a euforia da dissipação do cheiro incômodo alinhado à frustração do objeto artístico que se esvai, guardando em si apenas uma memória.
Ainda que tenham construído um léxico material e processual particular, a obra de ambos se encontra no desejo de realizar uma dilaceração do sentido. Por meio de uma intermaterialidade, o duo concreto e porcelana, constantemente discutido na produção de Érica, corresponde à transgressão proposta pela aproximação da naftalina com o mármore, presente nas obras de Nathan. Produz-se, assim, um novo campo de significações onde a estabilidade se mostra um absurdo. O sentido torna-se nada mais do que a relação entre matéria e sintoma, relacionados de uma forma dialética na qual se cruzam os desejos do artista e a subjetividade do espectador. É nesse entre-lugar, mediado por materialidades ambivalentes, que o duplo olhar da ausência presentificada pelas relações entre permanência e desaparição se constroem. As frágeis porcelanas que emergem dos blocos de concreto de Érica e os simulacros fadados à sublimação de Nathan realizam feridas não apenas no sentido, mas também no encontro com o outro.
Bordas da Ausência se propõe a pensar sobre a efemeridade que se impõe ao que nos ronda, em sua corporificação marcada por uma supressão desvelada. Tomando a falta como uma questão, ela se transfigura em matéria em cada um dos trabalhos selecionados, mas de forma diferente: torna-se pesado e imponente concreto ou efêmera e incômoda naftalina. A presença das obras neste espaço arquitetônico é feliz, pois nos lembra os escombros dos antigos casarões da Villa Aymoré, atualmente restaurados, dos quais um destes ergue-se esta galeria. Enquanto o trabalho de Érica nos recorda que muitas histórias deste e de outros lugares permeiam as estruturas do que nos rodeia, Nathan denuncia a brevidade da pretensa suntuosidade que reveste o cotidiano. Trabalhando a partir de memórias impossíveis de serem localizadas em um único lugar, ambos os artistas buscam elaborar o passado não de modo a cultuá-lo, mas a ativar no outro uma exigência de análise que possa lançar luz sobre o presente.
Sobre Érica Magalhães
Os resquícios construtivos de Érica Magalhães, ainda que deixem emergir bibelôs antigos ou criem um sítio arquitetônico sublime, demarcam memórias de espaços já inexistentes, cujo rastro não apagado deseja contar histórias de outros tempos. Valendo-se de materiais recorrentes em construções de edifícios, como cimento, vergalhões e pedras, a artista os aproxima de objetos intrinsecamente frágeis, como porcelanas e vidros. Eles atuam no jogo de forças entre matérias brutas e singelas, que, por vezes, parecem alternar suas propriedades em recusa a uma categorização dicotômica simples. O limiar construção/desconstrução, presente na primeira fase da artista, questiona, por conseguinte, a intenção do fazer artístico e seu produto simbólico. Enquanto o gesto por excelência de Érica parte da construção formal, elaborando suas peças a partir da montagem de elementos díspares e não por meio da apropriação de partes de edificações, o resultado evoca um imaginário nos quais a ruína é a protagonista. Um dos bibelôs que integram as obras, ironicamente, é proveniente da cidade alemã de Dresden, bombardeada durante a Segunda Guerra Mundial. Os olhos da boneca não mentem: os escombros que a tomam agora não se distinguem muito do que vira naquele dia. As porcelanas soterradas em concreto desafiam o outro com seus relatos, cujas inscrições em si dão pistas do seu percurso.
Trabalhando com formas e processos que lembram a produção em série, Érica evoca a memória de outros movimentos artísticos, como o Minimalismo americano, cuja pretensão era criar objetos específicos que não remetessem a nenhum sentido externo ao que fosse apreendido na experiência do corpo e do olhar. A artista, no entanto, produz uma dobra nessa tradição, inserindo desenhos pessoais aos cubos de concreto ou, ainda, incorporando à massa artigos dos quais se apropria. Estes carregam consigo memórias e afeições estéticas que permitem ao espectador a possibilidade de tecer suas próprias ficções através dos elementos presentes nas obras. Seus trabalhos não aludem à construção seriada de monumentos arquitetônicos, mas, antes, ao processo erosivo ao qual a formação construtiva é fadada a sucumbir, tanto no campo físico como no simbólico. Há, por fim, um resíduo desejante de antropomorfia na produção mais recente da artista. Suas Bonecas, recordam um corpo humano cuja altura toma de empréstimo a da criadora. Construídas de maneira modular, cujo rearranjo é capaz de formar diferentes combinações e, assim, dar vidas a outras bonecas, elas reproduzem um pensamento arquitetônico construtivo, do qual o todo é formado a partir da composição de partes autossuficientes.
Sobre Nathan Braga
Nathan Braga, em seu uso constante do mármore e da naftalina, tensiona a estabilidade das obras em sua permanência, já que elas perigam desfazer-se antes do fim de seu período expositivo. Sua produção coloca uma presença onde a iminência do desaparecimento se impõe graças às propriedades químicas da naftalina, reservando aos materiais com que se relaciona uma completa instabilidade. A angústia desvelada nos trabalhos do artista origina-se de sua pesquisa acerca de experiências pessoais, pontuadas pela falta da mãe. Ainda que suas peças sejam atravessadas de subjetividade, o branco opaco que envolve a maior parte delas revela um ensejo iconoclasta, a recusa da formação da imagem. Entretanto, estas são compostas à revelia por meio da criação simbólica evocada pelos signos. O autorreflexo, porém, se faz presente na série “Para levantar a cabeça do que aqui repousa”, onde formas em latão remetem à tradição fúnebre egípcia, na qual os mortos eram exumados acompanhados de mobiliários que assentavam suas cabeças. A recorrência do memento mori na produção de Nathan constitui-se enquanto alegoria a partir da forma e do signo. Curiosamente, esta última palavra, em grego (sema), tem como significação primeira o substantivo túmulo, nos lembrando que a construção de imagens perpassa sempre uma ausência mortificante do enunciado.
Segundo o artista, a busca pela mimese da mimese rege a primeira fase de sua produção. O simulacro, ou seja, a aproximação de elementos que possuem uma semelhança formal, mas qualidades físicas díspares, aponta em suas obras um apreço pelo falso. Frequentemente o mármore, matéria escultórica que busca perpetuar-se na eternidade, relaciona-se com a naftalina, substância química com propriedades sublimatórias. No entanto, o tempo, que permitia distinguir as especificidades de cada material, revela outra coisa: que nenhum dos dois signos é aquele que fora anteriormente. Em vez de promover um choque de disparidades, a justaposição equipara os elementos naquilo que os torna próximos: o estado de repelência. Enquanto o odor da naftalina causa um estranhamento em qualquer corpo pulsante, o mármore evoca a sedução sublime da morte. A impotência da matéria bruta, lançada ao devir, cujas lápides que recobrem duram mais do que aquilo que guardam, funde-se à debilidade do material químico, que não consegue permitir-se uma completa presença. Este último guarda, ainda, no outro, uma dupla reação: a euforia da dissipação do cheiro incômodo alinhado à frustração do objeto artístico que se esvai, guardando em si apenas uma memória.