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Derifa Afetiva: Dakar


Panmela Castro

Instituto Inclusartiz, RJ/BR
Ago. - Set. 2023

Texto Curatorial

Interseccionando sua trajetória calcada no vínculo entre arte, identidade e ética com as biografias de artistas e pensadores senegaleses, a carioca Panmela Castro apresenta os frutos deste ciclo de produção e encontros no Centro Cultural Inclusartiz. Resultado do período de quatro semanas em residência artística na Black Rock Senegal, promovida pelo artista norte-americano Kehinde Wiley (reconhecido internacionalmente por seus retratos e, por sua vez, ocupando o enquadramento da pintura de Panmela), a experiência se cristaliza em uma série de telas que revelam a fervilhante intelligentsia local da Dakar contemporânea e que atravessam o mar para relatar suas histórias e construir uma relação de equidade, travada entre o olhar do retratado e do público.

A visão das águas do Atlântico que envolvem as imediações físicas do ateliê da residência traça conosco uma complexa relação, carregada de dor e violência, que encontra no território senegalês um dos seus pontos culminantes: a Ilha de Goreia, um entreposto para o embarque de escravizados da costa ocidental do continente Africano que tinham como destino a América. Ainda que a prática de Panmela, que conecta aqui o Brasil à sua história colonial, seja tecida em uma trama viva permeada por feridas abertas, seu trabalho se constrói na compreensão de Sankofa: o retorno ao passado para ressignificar o presente e construir o futuro. Entrelaçamento histórico que pode ser sentido em cada gesto cravado nestas telas.

Há na intensidade pictórica de suas obras um certo movimento de formação da imagem que se concentra nas feições dos rostos – procedimento que, nas palavras da artista, almeja conferir dignidade ao outro, o que a levou a titular cada pintura com o nome e sobrenome do retratado como medida afirmativa desta decisão. Este, por sua vez, posa para Panmela carregando nada mais que suas vestimentas, localizando-o em sua cultura e período histórico pertencente. Tendo sido a prática do retrato de pessoas negras na história da arte brasileira carregada de construções plásticas e simbólicas que almejavam apresentá-las recorrentemente como corpo da labuta, por vezes em uma falsa construção de valoração que busca expurgar o que Anna Maria Gonçalves traduziu como um “defeito de cor”, a produção de artistas contemporâneos na luta antirracista é liberar esse corpo para sobreviver na mais plena integridade e liberdade. Sustentar o seu viver: este é o motivo pelo qual o fundo e os objetos em torno dos retratados parecem se dissipar nas pinturas da artista. A força que resplandece desses corpos varre os seus arredores, tornando-se rastros de cor, desenhos introdutórios ou mesmo o cru da tela.

Ainda que o gênero retratístico tenha reservado ao esquecimento povos subjugados em detrimento da eleição de um cânone, o trabalho de Panmela Castro não só resgata e reescreve narrativas silenciadas, mas também estabelece outras inéditas em uma relação de extrema intimidade. Intimidade esta em que o espectador é convidado a participar, mediado por suas rápidas e expressivas pinceladas que dão vida ao olhar das figuras. Em poses altivas, por vezes até serenas, os personagens se inscrevem na história e carregam consigo a memória de seus ancestrais. Este é o poder, senão reparador, ao menos acalentador, da travessia feita pela artista.

Lucas Albuquerque.

curadoria e pesquisa

lucasalbuquerques@gmail.com