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Futuração


Adriano Motta, André Niemeyer, Arthur Palhano, Betina Polaroid, Cabelo, Cadu, Darks Miranda, Eduardo Berliner, Elias Maroso, Gui Mauad, Gunga Guerra, Iryna Leblon, Osvaldo Carvalho, Otávio Barata, Pedro Paulo Honorato, Pedro Varela, Rafael Bqueer, Rodolpho Parigi, Sophie, Vitória Cribb e Yan Copelli

Projeto de curadoria e pesquisa
Galeria Aymoré, RJ/BR
Mar. - Abr. 2020

Texto Curatorial

Estamos em um momento revolucionário. [...] É um contexto de batalha semiológica e epistêmica pelo significado, pela definição e pela representação da realidade. Não acho que há momento histórico melhor para se viver. - Paul Preciado


No horizonte, um grande vazio. Tendo nossos destinos entregues à imprevisibilidade do surgimento de uma crise sanitária, vislumbrar o amanhã tornou-se tarefa árdua. Bombardeados pela intensidade do presente, que escorre pelos noticiários e jornais, o discurso clama a nós uma participação no agora. No entanto, a revolução paira no ar. A comunicação ocorre cada vez mais de maneira imaterial, transportando e multiplicando nossa presença por meio de telas. O consumo de imagens se converteu em moeda de troca do ocidente, convertendo dados em acesso. Nossos corpos são hoje campos de batalha, possibilitando modificações e leituras não convencionais que busquem conferir outros sentidos para além daquilo que nos foi designado.

Frente à irrupção da crise, um dos perigos de ceder ao imediatismo é a atrofiação da potência de imaginar. Incapacitados de pensar outras possibilidades de futuro, nosso discurso corre maior risco de veicular desesperança e conformismo, no lugar da busca pelo novo. Inversamente, é impossível não lidar com as forças que se anunciam, que já traçam o contemporâneo e apontam para transformações que já estão em curso. Viver em um período de esfacelamento da faculdade imaginativa e da análise crítica podem ser altamente perigosos, visto que isso impede a compreensão da realidade material que nos rodeia e, por consequência, uma atuação efetiva na invenção de um outro amanhã. Tendo em vista a aparição desse problema, como pode a arte revelar essas forças que já se apresentam e, ainda, alimentar a imaginação de modo a fomentar a construção do porvir?

A exposição Futuração, realizada na Galeria Aymoré durante o primeiro semestre de 2021, é um esforço de traçar outras perspectivas e estimular a sensibilidade de modo a permitir que voltemos a imaginar outros futuros. A proposição curatorial, formulada ao longo do período de reclusão vivido em 2020, se vale do termo “futuro pós-pandêmico”, comum aos discursos que buscam refletir sobre a dificuldade de predizer o curso do nosso momento político e social, em todo o seu potencial disruptivo. Valendo-se da privação dos nossos planos prévios, temos agora a oportunidade de fugir dos clichês e costurar possibilidades impossíveis de serem prefiguradas anteriormente.

Reunindo 20 artistas (Adriano Motta, André Niemeyer, Arthur Palhano, Betina Polaroid, Cabelo, Cadu, Darks Miranda, Eduardo Berliner, Elias Maroso, Gui Mauad, Gunga Guerra, Iryna Leblon, Osvaldo Carvalho, Otávio Barata, Pedro Paulo Honorato, Pedro Varela, Rafael Bqueer, Rodolpho Parigi, Vitória Cribb e Yan Copelli), o recorte curatorial buscou apresentar obras e processos que enfrentassem o amanhã, tensionando forças cujo caráter transgressivo apontem para transformações em voga. É importante pontuar, contudo, que não se procura obter realidades concretas nos esforços artísticos aqui exibidos. Entendendo que a arte opera, sistemicamente, no limiar da impossibilidade da produção da linguagem e, portanto, da formalização, busca-se nesta exposição encontrar não modelos, mas ecos.

Como maneira de estabelecer os interesses conceituais, o olhar voltou-se para o debate em torno da relação entre homem/máquina, tecnologia/manufatura, corpo/gênero e real/virtual. Mais especificamente, o recorte da pesquisa focou três tópicos específicos: 1) trabalhos que lidam com a imagem digital por meio de apropriações e usos das mídias contemporâneas, tais como a realidade virtual, a simulação e a montagem; 2) trabalhos que dialogam com as possibilidades do corpo e suas reinvenções, seja pelo caminho da desfiguração, da discussão de gênero e/ou da fuga das binariedades; e, por fim, 3) trabalhos que lançam questionamentos sobre as atuais estruturas de poder e vetores que normatizam o agir, questionando-os e propondo sua subversão.

Ainda que os interesses não visem constituir categorizações acachapantes, eles tornam-se válidos para a constituição de pequenos núcleos e diálogos na expografia. O primeiro núcleo se concentra em trabalhos que dialogam com as novas mídias digitais ou visualidades e lidam com uma imaterialidade espetacular, explorando sensibilidades relativas às questões estéticas e sociais para as quais esses meios apontam. Contamos com a presença de Vitória Cribb, que, em um vídeo em animação digital, apresenta um corpo que é produzido e transformado de acordo com os desejos da máquina. Somado às intervenções gráficas no corpo da personagem, que luta para sair do ciclo vicioso em looping, a narração em tom intimista incita reflexões sobre a relação de consumo entre os usuários e as redes. As mídias sociais também são alvo de discussão em “No Image Available”, de Osvaldo Carvalho, que se apropria do ícone de perfil padrão do Facebook e torna-o objeto de reflexão pictórica, fundindo o símbolo genérico com a sua própria silhueta, enquanto questiona a contradição implícita tanto no discurso veiculado pela imagem digital quanto na sua apropriação na pintura. Já Arthur Palhano, pintor de formação, se vale do mundo aberto proposto pelo jogo de videogame Grand Theft Auto V para realizar registros de animais e pessoas mortas encontradas ao longo da exploração naquele território. Evidenciando a contradição entre fotogenia e artificialidade, suas imagens impactam em um primeiro momento pela violência inerente aos atos com os quais lida. Transpassada a barreira do horror, as imagens revelam que não são aquilo que aparentemente buscam mimetizar. Frente a esse problema, Palhano convida o espectador ao jogo para tirar suas próprias conclusões. A drag Iryna Leblon também se utiliza de corpos produzidos de maneira digital para compor um curta que flerta com os fashion films. Em “Tea”, corpos metalizados e com detalhes em neon desfilam por um palco e realizam movimentos de vogue. Servindo como ponto de contato entre o primeiro e o segundo tópico, junto à Iryna, Darks Miranda propõe ao espectador uma lambada estranha em meio a um Rio de Janeiro caótico e surreal, cercado por raios e lava. Seres humanos vestidos com trajes que mascaram suas identidades convidam o público para uma dança descompassada e aleatória, capaz de evocar e produzir mundos singulares. Há, ainda, a presença de Cabelo, cujo neon pertencente à série “Luz e Trevas” flerta com o traço sinuoso do picho, pervertendo uma pretensa ideia de progresso e consumo.

O segundo interesse, pontuado pelas reinvenções de corpo e gênero, apresenta trabalhos que lançam ao espectador a dúvida. O corpo se expõe enquanto campo de disputa simbólica, abrindo espaço para outros modos de representação que questionam uma leitura estável acerca de seus limites e de sua constituição. Betina Polaroid participa com uma série de autorretratos cuja caracterização é sobreposta por imagens in and out of drag, resultando em sobreposições marcadas por uma constante metamorfose. A câmera torna-se, para além de mero dispositivo fotográfico, um objeto performático. Em “Pussycat”, André Niemeyer pinta uma figura humana com características masculinas que se funde à padronagem do fundo, buscando camuflar-se. Seu rosto maquiado, no entanto, salta da imagem como que recusando-se a ceder ao anonimato. Ainda que a palavra pussycat tenha significados próprios na língua inglesa, muitas vezes em tom pejorativo quando direcionado à comunidade LGBTQIA+, um diálogo entre pussy (órgão sexual feminino) e cat (gato) parecem encontrar lugar de representação na composição. Já Rodolpho Parigi utiliza a artificialidade como maneira de tornar estranho o seu objeto de representação. O corpo é vestido com um traje verde metalizado que remete ao fetichismo. Aliada à proporção da tela, a figura ressalta sua condição artificial e fluida. A drag Gui Mauad nos apresenta uma sereia cujos traços mesclam a mitologia à um ser futurista híbrido. Divididos em fotografia e filme, seus trabalhos flertam, ambiguamente, com o desejo de verossimilhança e a evidenciação da ilusão inerentes à montação. Além disso, a releitura de Mauad traça um outro olhar para a figura mitológica, imbuindo-a de elementos que dialogam com a artificialidade que compõe o imaginário futurístico. Por fim, Rafael Bqueer propõe uma série de ações que resultam em registros fotográficos, nos quais se caracteriza como a personagem Alice, de Lewis Carroll. Referenciando elementos do carnaval e da literatura europeia, Bqueer realiza um embate entre a atitude sonhadora caracterizada por um corpo racializadx e não-normativo que se depara com um Brasil imerso em contradições e promessas.

A última linha de interesse reúne obras que constroem sensibilidades partindo de tensionamentos sobre estruturas de poder e vetores que normatizam o agir. Evidenciando a artificialidade que engendra as transformações sociais em voga e subvertendo-a, esses trabalhos apontam para caminhos onde o humano e o seu entorno são cada vez mais atravessados por forças dissonantes. Pedro Paulo Honorato realiza uma série de pintura-objetos em embalagens de delivery, sobre as quais realiza um autorretrato. A figura é representada em traços esquemáticos, carregando um semblante inebriado e absorto. Valendo-se de materiais comuns ao consumo de junkfood, Honorato nos apresenta uma imagem complexa em que as relações de precariedade que envolvem o sistema trabalhista e os alimentos ultraprocessados e artificiais são deglutidos por fungos orgânicos. O binômio orgânico/inorgânico também é percebido em “Ar aos pedaços”, de Eduardo Berliner, cuja composição triangular funde e borra os limites entre o artificial e o humano. Enquanto um osso descarnado e um crânio animal irrompem em um harmonioso equilíbrio junto a uma estrutura mecânica articulada, a base da forma é construída a partir de uma perna que transita entre o biológico e o plástico. Forças conflitantes também se fazem presentes na série “O Monge Pierrot e o Náufrago Nupcial”, de Cadu, em que o rigor da abstração geométrica é permanentemente tensionado pela imprevisibilidade da técnica de marmorização e pela voracidade da colagem. Enquanto a forma triangular no centro da composição instaura um movimento autocentrado, criando uma força que dubiamente suga e impele as formas ao seu redor, a marmorização propõe outros caminhos de ação e leitura. Yan Copelli utiliza-se da estrutura maquínica para criar um objeto zoomórfico que flerta com o fetiche e o grotesco. Enquanto a focinheira e o plug anal trazem para o ambiente público objetos eróticos que usualmente estão resguardados ao espaço privado, a frase “Desire Machine” manifesta o apelo libidinal que o objeto busca ativar no indivíduo, capaz de refleti-lo na chapa de vidro onde o plug é posicionado.

Ainda dentro da última linha, Otávio Barata exibe duas pinturas que sugerem práticas de autorreflexão. Em “Qual o contrário de emoção” destaca-se a figura de um objeto que se assemelha a uma TV antiga ou mesmo a um ser alienígena, cuja proximidade com as inserções textuais questiona as manifestações de ordem e padronização às quais os corpos precisam se submeter. Questionando discursos que também manifestam padrões regulatórios, Elias Maroso apresenta uma instalação onde frases e comandos inerentes a softwares são evidenciados e adquirem novas condições de visibilidade, enquanto uma placa de circuito com função bloqueadora de sinais de telefones celulares convida o espectador à conquista de sua autonomia frente à submissão imposta pelas tecnologias. Já Adriano Motta participa com uma série de globos onde continentes e oceanos, personalidades políticas plantas, animais, memes, seres fantásticos e figuras disformes se repetem em toda a superfície circular e se agrupam em imagens inquietantes, nos remetendo a mundos desordenados e caóticos. Por fim, Gunga Guerra sugere o retorno de animais que, originalmente expulsos de seu habitat natural, reivindicam seu lugar e propõem uma outra organização espacial e política daquilo que conhecemos.

Encerrando a seleção, como uma cartada final, Pedro Varela estimula o imaginário acerca do futuro incorporando cartas de tarô e oráculos de diferentes culturas, cada uma delas formada pela iconografia da crença a qual pertencem. Dispondo-as de modo a remeter a uma grande cidade, a pretensa estabilidade é constantemente ameaçada pela iminência do desabamento. A precariedade é tornada evidente e testemunha o momento sobre o qual essa exposição se apoia, imersa no horizonte incerto de possibilidades que se descortinam à nossa frente.

A seleção curatorial não deve ser tomada, no entanto, como uma narrativa progressista de futuro. Embora estejamos acostumados à captura de nossos desejos a partir de uma promessa sedutora do amanhã, Walter Benjamin nos lembra que “A ideia de um progresso da humanidade na história é inseparável da ideia de sua marcha no interior de um tempo vazio e homogêneo”. Em vez de construir uma narrativa que vise traçar um curso determinista sobre o amanhã, as obras aqui expostas discutem – por meio da imagem e do gesto – perspectivas sobre a potência da arte na geração de outros futuros. Xs artistas são tomados como conjuradores de mundos, cujas flechas lançadas no contemporâneo são capazes de moldar, ou, ainda, implodir o porvir. Ainda que nossas ferramentas se mostrem, futuramente, incapazes de absorver as pulsações do amanhã, devemos nos esforçar para antever aquilo que já deixa seus vestígios no presente.

Como modo de enfrentar o distanciamento social e a impossibilidade de visitas aos ateliês dxs artistas, a pesquisa para a exposição realizou entrevistas individuais com cada um dxs participantes. Desse modo, buscamos não apenas entender os processos que perpassam as obras – muitos dos quais não deixam vestígios no objeto final, exibido na exposição –, mas também pretendemos construir um documento de consulta, já que uma das preocupações da curadoria foi trazer trabalhos de artistas jovens, bem como promover uma inserção de grupos que normalmente não encontram espaço em instituições de arte para apresentar e formalizar seu trabalho, como é o caso das drag queens, presentes em número expressivo nesta exposição.

Por fim, gostaria de citar Franco Berardi, que alerta: “O futuro se transforma em ameaça quando a imaginação coletiva se torna incapaz de ver possibilidades alternativas para a devastação, a miséria e a violência”. Entendendo que a atrofiação da capacidade de imaginar apresenta-se atualmente como arma para explodir e implodir a potência da arte em promover uma análise crítica acerca do contexto atual e futuro que enfrentaremos, nunca foi tão importante insistir no caráter revolucionário das manifestações artísticas. Como maneira de arqueologizar o porvir pela arte, nesta exposição, o cenário pós-pandêmico é adotado enquanto chave de reflexão em seu potencial distópico: na dialética paradoxal em que a pulsante promessa de transformação do contexto político, biológico e cultural se anuncia ou, ao contrário, na possibilidade da ocorrência de uma intensa reificação da cultura vigente. Enfrentar o complexo emaranhado de relações que nos aflige atualmente é entender que o futuro pode ser irreconhecível em determinados momentos, mas que, em outros, a distopia acontece agora.

Lucas Albuquerque

curadoria e pesquisa

lucasalbuquerques@gmail.com