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Lua Coelho Negra


Tadáskía

Acompanhamento de residência e texto crítico
Instituto Inclusartiz, RJ/BR
Mai. - Jun.  2023

Texto Curatorial

“coelha negra te vi na mata
da janela da aeronave; e
jamais saberia que eram tantas
as nossas semelhanças
(em um país estrangeiro)
com a lua
e com a solidão”


Se no início tudo era revoada, para a artista carioca Tadáskía o movimento agora parece ser menos o de bater em retirada e mais o de realizar saltos. Fruto de sua passagem por duas residências – a austríaca Salzburger Kunstverein, e aqui, no Instituto Inclusartiz –, seu segundo livro de desenhos, intitulado Lua Coelho Negra (2023), apresenta o pulo como elemento constitutivo da trama, seja na qualidade do movimento do animal narrado, seja nos deslocamentos realizados ao longo da leitura. O mamífero surge em virtude de uma experiência de deslocamento, quando, ao realizar sua segunda viagem para fora do Brasil, a artista vê pela janela de seu avião, durante o pouso, uma série de coelhos imersos em uma quase completa escuridão. Banhados pela noite, seus olhos vermelhos sobressaiam-se de seus focinhos, causando em Tadáskía uma marca prévia de sua experiência no tempo vivido na Áustria.

“meu corpo é uma lua
parado
uma lua colorida e escura
correndo
uma lua iluminada também”


Divididos entre texto em grafite e desenho em lápis de cor, giz e spray, as laudas se alternam em uma mútua provocação. Os desenhos que integram o livro deixam surgir, aqui e ali, rastros da coelha em seus movimentos irreverentes. Para vê-la é preciso, antes de tudo, estar disposto a integrar o seu jogo: espirituosa, ela gosta de se esconder por detrás da ranhura do desenho, por dentro da trama do papel, pelos buracos de minhoca que só seus sentidos são capazes de encontrar. Mas, ah, como gosta de exibir sua penugem, seu rabo, suas patas. Mesmo seus finos bigodes são marcas a serem impressas no decorrer do livro. A coelha as exibe pois sabe que seu corpo é uma conquista. As esconde também pelo mesmo motivo, fazendo uso de sua própria transformação a fim de envolver o espectador em sua dança. Assim, sua miragem é envolta em desenhos por vezes expansivos, por vezes entrópicos; ora contidos em duras linhas que delimitam o seu contorno, ora por entre duros rabiscos que a camuflam; e, em alguns momentos, o que vemos é nada mais que o puro rastro de suas patas. Nunca, entretanto, sem deixar o rastro de suas cores para trás, das mais cândidas às mais vibrantes. Vibrantes como o deleite do seu viver.

“linguagem amorosa e estranha
a nascer junto de nossas peles
desenhada além do nosso entorno:
um manancial, a fluir”


Os versos que entremeiam as laudas de desenho narram as peripécias da coelha em sua relação de extrema intimidade com a artista. Contudo, quebram uma pretensa estabilidade temporal na maneira como manejam os desenhos, na fricção entre o sentido do escrito e do percebido. No acordo estabelecido com o espectador, modificam o sentido da imagem prévia e a da que os sucede. Extrapolam a camada de sentido ao borrar a fronteira daquilo que é visto e com o que é narrado. Ademais, a camada da palavra estabelece uma relação visceral entre a coelha e a artista, num imbricamento capaz de dissociar as duas figuras. Na mesma tradição de Clarice Lispector e Franz Kafka, Tadáskía é tomada de assalto por um outro devir-corpo, tão radicalmente oposto, mas cuja liberdade e atrevimento fazem parte de um jogo de dupla identificação. Trata-se de um corpo encarnado, disposto a habitar aquilo que é percebido. Corpos em salto, colidindo-se um ao outro na gravidade da palavra que se faz verbo. Cada letra é usada como uma forma de tocar, lamber, se apoderar das propriedades de um novo corpo.


“dizemos arrrrr arrrr arrrr”

“com batuques louvamos brrrrr brrrr brrrr”


Há, ainda, na relação própria à palavra, a dimensão sonora de uma nova língua que se produz a partir da experimentação de novos timbres. Entre onomatopéias e gemidos, a invenção de uma língua serve à comunhão aos prazeres da carne como também a conecta ao metafísico. Ambas as intenções em total comprometimento com o ato desejante. Canalizam o amor e a lascívia em crescente expansão, tão assustadores quanto excitantes, na vibração inerente a um corpo que agora se acostuma com um outro vocabulário afetivo. É possível ouvir o tremor das cordas vocais na cadência das ranhuras de cor que formam a carapaça da coelha, apreendida em perfil pouco antes de iniciar seu canto louvor. Repousam na harmonia de um corpo agora sonante.

“louvamos e louvamos
a capacidade de amar
(pulando e movendo)
uma tamanha transformação
sentimental”


Se a força de Ave Preta Mística (2022), primeiro livro de desenhos produzido pela artista, se produziu em formas circulares voltadas ao seu próprio centro, como uma energia em fusão, a conjuração animalesca de Lua Coelho Negra habita um corpo construído no choque de colisões de um delicioso desajuste. A questão que paira ao meio do primeiro livro, “haverá quem nos reconheça?”, parece não fazer mais sentido já na primeira estrofe de seu sucessor, que antes convoca o outro ao seu comparecimento: “meu amor eu te chamo: venha até mim se eu não te conheço, e que eu vá até você se você não me conhece”. A incerteza abre caminho para o direito ao gozo, iluminado pela luz de um corpo celeste que interpela outros dois seres em sua mais perfeita órbita.

Lucas Albuquerque.

curadoria e pesquisa

lucasalbuquerques@gmail.com