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Manhã Nunca Acaba


Béla Pablo Janssen

Acompanhamento de residência artística e texto
Instituto Inclusartiz, RJ/BR
Fev. - Mar. 2023

Texto Curatorial

Segundo o mito narrado por Plínio, o Velho, na Grécia Antiga os pintores Zêuxis e Parrásio dominavam com grande maestria o realismo pictórico, sendo capazes de ludibriar a percepção de qualquer um que se deparasse com seus afrescos e painéis. Certo dia, por puro exercício da vaidade, criou-se uma competição de modo a revelar qual dos dois era o mais habilidoso. Zêuxis, respondendo ao desafio, pintou frutas tão suculentas que mesmo os pássaros vieram ao seu encontro para comêla, incapazes de distinguir entre representação e realidade em suas imagens. No dia seguinte, Parrásio convida o oponente a visitar seu ateliê, conduzindo-o a uma tela coberta por um pano. Zêuxis, de prontidão, ordena o levante da cortina para tirar a prova. No momento em que avança para tal, o pintor se dá conta de que fora vencido pela virtuosidade de seu adversário: o tecido nada mais era que uma representação, tão convincente que enganara não só os sentidos dos pássaros, mas também o olhar de um artista.

Porém, o constrangimento de Zêuxis causado por sua derrota o cegara para o reconhecimento de Parrásio como um dos primeiros pintores a refletir sobre a própria condição da pintura. Séculos mais tarde, em uma tradição pictórica que perpassa as imagens religiosas de Piero della Francesca, a carnalidade e aristocracia de Rembrandt e Vermeer, o impacto da descoberta do inconsciente por Magritte e a investigação formalista de Gerhard Richter, a alegoria da cortina sobrevive como uma lembrança de sua natureza duplamente nebulosa: ao mesmo tempo em que é uma especulação acerca do que está para além de sua superfície, é também materialidade encarnada. Entre o fardo da representação e a planaridade inerente à pintura, a cortina interpõe-se em sua misteriosa condição do cobrir e do mostrar, produzindo novos enquadramentos. Convida à autorreflexão.

As cortinas que figuram nas pinturas de Béla Pablo Janssen estabelecem um jogo de representação e meio material na própria condição de visibilidade que se estabelece. Aqui, tecidos translúcidos e vidros brincam com a ideia do ver através, produzindo uma caçada espiralar daquilo que, em algum momento, dará o ar da graça. O que se dá a ver, porém, é justamente a intrínseca condição da pintura tornada tangível em sua alegoria autorreflexiva por excelência, refazendo-se a todo instante em sua metalinguagem. Produzida durante o processo de residência artística de Janssen no Instituto Inclusartiz e na Fundação Armando Alvares Penteado - FAAP,
a série “Sim, Sim, Segredos Fugazes“ (2022) - nome que funciona também como mantra - apresenta o outro, ou seja, o espectador, como parte constituinte de sua completude: a reflexão no vidro e a movimentação do tecido produzido por um corpo em relação constrói ficções acerca do interior e exterior. Ora presença esvaziada, ora ausência em potência.

Há, contudo, na dualidade das relações que não se fixam na produção do artista, um certo flerte com o misticismo que se deixa entrever pelas frestas que escapam ao redor dos vidros. Uma cena é recorrente em algumas das pinturas: nela, galhos e folhas se sobrepõem à imagem de uma escultura ao fundo. Um corpo feminino? Um objeto religioso? Parecendo adquirir sentido pelas bordas, a misteriosa figura escoa na tão convidativa alegoria das cortinas, que convoca consigo boa parte da história da pintura ocidental e, ainda, lhe conservam o direito da dúvida. Liberada do fardo da resposta, a imagem é então negativada, colorida, rotacionada e fraturada, submetendo-se a uma série de experimentações que tensionam o seu próprio conteúdo. Dentro da investigação pictórica, adquire diferentes leituras mediante a sua aplicação. Ainda que uma certa banalidade a encontre de prontidão neste processo, como fechar os olhos ao yin-yang produzido na relação de oposto complementar na obra “sim, sim segredos fugazes (two curtains), 2022“? A própria circularidade guarda em si o místico - forma, por excelência, do tempo cíclico divino, da mandala, do ritual. Algo entre o assombro e o místico.

Abre-se, desta maneira, uma outra compreensão para os interesses que circundam o corpo dos trabalhos apresentados. O círculo faz-se presente também na própria ideia de loop que rege a experimentação poética de um conjunto de obras - seja no circuito da fita de música, nos guarda-sóis, no mosquiteiro ou na frase “manhã nunca acaba“, estampada em tecidos e aqui dispostos. Enquanto a leitura formal da cortina traça uma crença no objeto e nas qualidades do meio material, a forma circular realiza uma nova aposta - dessa vez, não na magia da imagem em fazer-se janela, mas no potencial da arte de conduzir um reencantamento do mundo.

Em seu aspecto lúdico e fugaz, os materiais em TNT colorido, cuja candura amacia o olhar, dança na companhia do vento, produzindo uma pintura na qual o uso da cor se estabelece em relação ao seu entorno. Tornando-se fundo nos guarda-sóis da série “horizontal agora vertical” (2023), o octógono é acompanhado de uma aquarela ao centro, cujo motivo trata de apreensões rápidas do horizonte em seu amanhecer. A frase “manhã nunca acaba” estampa as bordas da pintura-objeto, propondo o potente vislumbre de uma manhã sem fim que, lançado o desafio espaço-temporal, revela-se empiricamente possível na mudança de perspectiva daquele que vê, já que o nascer e o pôr do sol são expressões localizadas em um ponto fixo. A luz que anuncia a alvorada nunca para de surgir em alguma parte do globo, afinal. Forma e texto evidenciam um problema de perspectiva, outro tema caro à tradição pictórica mas que, aqui, indica sua discussão menos no campo da representação e mais da posição. Se o esticamento do tempo pode parecer deveras absurdo a partir de uma ótica física, a solução se deixa ver entre camadas de cor e pinceladas: incapaz de caminhar em presença do sol de maneira contínua, o artista torna perene o seu desejo nas aquarelas. Sem segredos.

curadoria e pesquisa

lucasalbuquerques@gmail.com