MUAMBA: brazilian traces of movement
Adriano Machado, Ana Hortides, Andrea Hygino, Anna Costa e Silva, Arthur Palhano, Benedito Ferreira, Darks Miranda, Desali, Dhiani Pa’saro, Duhigó, Elias Maroso, Emília Estrada, Erica Storer, Froiid, Gu da Cei, Iah Bahia, Íris Helena, João Paulo Racy, Kauê Garcia, Keila Sankofa, Laryssa Machada, Luiz D'orey, Mayara Velozo, Nathan Braga, Patfudyda, Rafael Bqueer, Vitoria Cribb e Yhuri Cruz.
Ruby Cruel, Londres/UK
Out. - Nov. 2023
Texto Curatorial
(-22,8178129, -43,2430924)
26 de setembro de 2023, 20h11 (GMT-4)
Saguão de embarque do Aeroporto do Galeão, Rio de Janeiro. Atrás de mim, alguns passageiros se comunicam em japonês, enquanto, ao meu lado, palavras em inglês são emitidas através de um iPhone. Enquanto escrevo, me apoio delicadamente sobre a obra de Elias Maroso, artista gaúcho cujo trabalho em torno de arte, tecnologia, comunicação e hacking parece, agora, tão deslocado, guardado em minha mochila. Meus outros companheiros de viagem já não me cercam mais, ainda que eu possa sentir suas vibrações em algum lugar nas proximidades deste grande bloco de cimento, vidro e operações telemáticas. Eles foram despachados há cerca de duas horas em uma mala de viagem doméstica, organizada da forma mais segura e compacta possível. Uma grande muamba foi produzida com o intuito de montar uma exposição em Hackney, a pouco mais de 9.300 quilômetros de minha localização atual. Um desejo conceitual nascido da recusa ao imperativo de impossibilidade delineado pelas distâncias econômicas e políticas no que tange o fluxo de arte entre o Brasil e o Reino Unido.
O despacho de objetos de arte, apesar de eleito como norteador conceitual desta exposição, é prática comum no mercado de arte. Tal processo se intensificou devido ao crescimento do mercado de arte nos últimos anos, impulsionando a inclusão de galerias brasileiras em feiras de arte internacionais e refletindo na participação de mais obras brasileiras em mostras institucionais. Permeado pela recepção de debates decoloniais em espaços artísticos, práticas em torno do Antropoceno e novas formas de ser, esse trânsito cresce década após década. Todos esses debates estão na esteira de carga e descarga de bagagens embaladas em material plástico.
Qual é, contudo, a relação entre a prática da muamba e a arte contemporânea? Originária da língua quimbanda, de Angola, a palavra Muamba fazia menção aos largos cestos utilizados para transportar itens em viagens. Contudo, em um contexto colonial, passou a designar itens que viajavam clandestinamente da África para as Américas, como temperos, joias e itens religiosos, sendo vendidos de maneira informal em solo brasileiro. A relação de cor, que pauta os usos e as transformações no Brasil colônia, ainda é evidente no uso contemporâneo da palavra, que atualmente designa milhões de brasileiros que trabalham informalmente e fazem da compra, do transporte e, finalmente, da venda de produtos sua principal fonte de renda. (Devo mencionar, ainda, que 43,4% do proletariado negro opera na informalidade. O número aumenta quando se olha para os grupos preto e pardo, chegando a incríveis 47%, enquanto o proletariado branco chega a pouco menos de 33%. Podemos, portanto, definir a cor dos muambeiros brasileiros). No vernáculo informal do português brasileiro, a palavra muamba também é utilizada para fazer referência a itens transportados irregularmente, como é o caso de tantos jovens artistas que, sem o apoio de uma galeria, viabilizam suas práticas e se apresentam no circuito de modo pouco custoso. Os famosos muambeiros das artes.
(40,677888, -15,466291)
27 de setembro de 2023, 10h56 (GMT-0)
Voo KL0706 GIG — AMS. Lembro-me com certa diversão da minha última viagem, voltando da Europa ao Brasil, quando trouxe na mala uma obra de uma artista brasileira em residência em Londres. Era uma luminária de 50x50x20 cm feita de borracha e metal, que deveria chegar a tempo de ser exposta na SP–Arte, a mais importante feira de arte da América Latina. Curiosamente, o trabalho discutia a troca simbólica entre o Brasil e o Reino Unido durante o ciclo da borracha, que, no século XVIII, condicionou a economia de parte do país em torno do material. Conduziu, no entanto, a uma mudança estética e artística no gosto da época, produzindo um frenesi daquilo que hoje chamamos de “Belle Époque dos Trópicos”, onde as grandes cidades mimetizavam a arquitetura e as artes para seguir os cânones da arte europeia da época, produzindo uma estranha relação de, por um lado, imposição cultural e, por outro, interpretação dos signos tropicais na alcunha dos termos visuais da Art Nouveau e do Arts & Crafts. A artista, imersa nesta pesquisa e buscando compreender como o Brasil havia, por sua vez, influenciado a arte britânica nesse contexto histórico, reverteu o fluxo do ciclo da borracha no simples ato de despachar seu trabalho como um objeto de valor simbólico para o Brasil. Minha mala foi o meio e, eu, a testemunha de sua ação.
Agora, em pleno voo, faço deste fluxo o ponto central da minha viagem. Repouso sobre um tapete de malas centímetros abaixo dos meus pés. Viajam comigo vinte e seis artistas viajam; nesta viagem, incontáveis outros. No recinto escuro que enolve os seus recipientes plásticos, a condição de não visibilidade e a falta de credenciais que certifiquem o seu valor material e simbólico os tornam objetos materiais puramente sólidos, tão valiosos quanto o meu cardigã que os envolve e protege. A aura que reveste o objeto de arte é suspensa durante algumas horas, aguardando seu retorno ao meu corpo e, futuramente, aos corpos que lerão este texto. Talvez anseiem tanto pelo sucesso desta missão quanto eu, temerosos do menor sinal possível de extravio.
(-22,8178129, -43,2430924)
27 de setembro de 2023, 16h01 (GMT +2)
Aeroporto de Amsterdã. Um erro de ajuste entre o avião e o túnel de desembarque, e lá se vão cinquenta minutos de espera. São vinte minutos a menos para minha conexão. Na inspeção, mais quinze minutos são dispendidos na investigação minuciosa de um doce de caramelo e coco. Açúcar queimado pode soar mais ameaçador do que o objeto de arte nas políticas de imigração.
(51,533496, -0,095339)
27 de setembro de 2023, 22h13 (GMT+1)
Solo britânico. O primeiro vislumbre da cor da mala na esteira e o prelúdio da exposição parece terminado. Eu a abro para garantir que todos os itens chegaram em segurança. Entre um carrinho de baú e outro, trêmulo e precário, a esperança de uma saída tranquila é subitamente interrompida pelo chamado de um guarda, que intercepta minhas malas e me guia até a sala de exames. A breve conversa após a inspeção gira em torno de políticas antidrogas e advertências contra a venda de armas de fogo ou joias valiosas. A busca por tais itens em minha mala, porém, condiciona a abertura do pequeno tubo que protegia papéis e telas, os quais subitamente me torno não apenas curador de uma exposição, mas também autor de tais pinceladas e escolhas estéticas. A pergunta sobre o valor e o destino das peças só é interrompida pela chegada de uma segunda oficial, uma mulher de pele escura e hijab, que parece interessada na imagem abstrata estendida sobre a mesa de exame. Ela expressa grande apreço pela pintura e logo começa a identificar signos da abstração, deduzindo os motivos que influenciam a escolha de cores e formas. Ao agradecer o olhar e a interpretação, ela afirma, e nunca esquecerei: “Acho que gostei porque também vim de um lugar tropical”. Durante poucos segundos, habitamos um mesmo terreno. No desejo de multiplicar tais cores e formas, segui meu destino final, carregando os efeitos de pequenos delitos guiados por uma eterna recusa à fixidez.
Lucas Albuquerque.
26 de setembro de 2023, 20h11 (GMT-4)
Saguão de embarque do Aeroporto do Galeão, Rio de Janeiro. Atrás de mim, alguns passageiros se comunicam em japonês, enquanto, ao meu lado, palavras em inglês são emitidas através de um iPhone. Enquanto escrevo, me apoio delicadamente sobre a obra de Elias Maroso, artista gaúcho cujo trabalho em torno de arte, tecnologia, comunicação e hacking parece, agora, tão deslocado, guardado em minha mochila. Meus outros companheiros de viagem já não me cercam mais, ainda que eu possa sentir suas vibrações em algum lugar nas proximidades deste grande bloco de cimento, vidro e operações telemáticas. Eles foram despachados há cerca de duas horas em uma mala de viagem doméstica, organizada da forma mais segura e compacta possível. Uma grande muamba foi produzida com o intuito de montar uma exposição em Hackney, a pouco mais de 9.300 quilômetros de minha localização atual. Um desejo conceitual nascido da recusa ao imperativo de impossibilidade delineado pelas distâncias econômicas e políticas no que tange o fluxo de arte entre o Brasil e o Reino Unido.
O despacho de objetos de arte, apesar de eleito como norteador conceitual desta exposição, é prática comum no mercado de arte. Tal processo se intensificou devido ao crescimento do mercado de arte nos últimos anos, impulsionando a inclusão de galerias brasileiras em feiras de arte internacionais e refletindo na participação de mais obras brasileiras em mostras institucionais. Permeado pela recepção de debates decoloniais em espaços artísticos, práticas em torno do Antropoceno e novas formas de ser, esse trânsito cresce década após década. Todos esses debates estão na esteira de carga e descarga de bagagens embaladas em material plástico.
Qual é, contudo, a relação entre a prática da muamba e a arte contemporânea? Originária da língua quimbanda, de Angola, a palavra Muamba fazia menção aos largos cestos utilizados para transportar itens em viagens. Contudo, em um contexto colonial, passou a designar itens que viajavam clandestinamente da África para as Américas, como temperos, joias e itens religiosos, sendo vendidos de maneira informal em solo brasileiro. A relação de cor, que pauta os usos e as transformações no Brasil colônia, ainda é evidente no uso contemporâneo da palavra, que atualmente designa milhões de brasileiros que trabalham informalmente e fazem da compra, do transporte e, finalmente, da venda de produtos sua principal fonte de renda. (Devo mencionar, ainda, que 43,4% do proletariado negro opera na informalidade. O número aumenta quando se olha para os grupos preto e pardo, chegando a incríveis 47%, enquanto o proletariado branco chega a pouco menos de 33%. Podemos, portanto, definir a cor dos muambeiros brasileiros). No vernáculo informal do português brasileiro, a palavra muamba também é utilizada para fazer referência a itens transportados irregularmente, como é o caso de tantos jovens artistas que, sem o apoio de uma galeria, viabilizam suas práticas e se apresentam no circuito de modo pouco custoso. Os famosos muambeiros das artes.
(40,677888, -15,466291)
27 de setembro de 2023, 10h56 (GMT-0)
Voo KL0706 GIG — AMS. Lembro-me com certa diversão da minha última viagem, voltando da Europa ao Brasil, quando trouxe na mala uma obra de uma artista brasileira em residência em Londres. Era uma luminária de 50x50x20 cm feita de borracha e metal, que deveria chegar a tempo de ser exposta na SP–Arte, a mais importante feira de arte da América Latina. Curiosamente, o trabalho discutia a troca simbólica entre o Brasil e o Reino Unido durante o ciclo da borracha, que, no século XVIII, condicionou a economia de parte do país em torno do material. Conduziu, no entanto, a uma mudança estética e artística no gosto da época, produzindo um frenesi daquilo que hoje chamamos de “Belle Époque dos Trópicos”, onde as grandes cidades mimetizavam a arquitetura e as artes para seguir os cânones da arte europeia da época, produzindo uma estranha relação de, por um lado, imposição cultural e, por outro, interpretação dos signos tropicais na alcunha dos termos visuais da Art Nouveau e do Arts & Crafts. A artista, imersa nesta pesquisa e buscando compreender como o Brasil havia, por sua vez, influenciado a arte britânica nesse contexto histórico, reverteu o fluxo do ciclo da borracha no simples ato de despachar seu trabalho como um objeto de valor simbólico para o Brasil. Minha mala foi o meio e, eu, a testemunha de sua ação.
Agora, em pleno voo, faço deste fluxo o ponto central da minha viagem. Repouso sobre um tapete de malas centímetros abaixo dos meus pés. Viajam comigo vinte e seis artistas viajam; nesta viagem, incontáveis outros. No recinto escuro que enolve os seus recipientes plásticos, a condição de não visibilidade e a falta de credenciais que certifiquem o seu valor material e simbólico os tornam objetos materiais puramente sólidos, tão valiosos quanto o meu cardigã que os envolve e protege. A aura que reveste o objeto de arte é suspensa durante algumas horas, aguardando seu retorno ao meu corpo e, futuramente, aos corpos que lerão este texto. Talvez anseiem tanto pelo sucesso desta missão quanto eu, temerosos do menor sinal possível de extravio.
(-22,8178129, -43,2430924)
27 de setembro de 2023, 16h01 (GMT +2)
Aeroporto de Amsterdã. Um erro de ajuste entre o avião e o túnel de desembarque, e lá se vão cinquenta minutos de espera. São vinte minutos a menos para minha conexão. Na inspeção, mais quinze minutos são dispendidos na investigação minuciosa de um doce de caramelo e coco. Açúcar queimado pode soar mais ameaçador do que o objeto de arte nas políticas de imigração.
(51,533496, -0,095339)
27 de setembro de 2023, 22h13 (GMT+1)
Solo britânico. O primeiro vislumbre da cor da mala na esteira e o prelúdio da exposição parece terminado. Eu a abro para garantir que todos os itens chegaram em segurança. Entre um carrinho de baú e outro, trêmulo e precário, a esperança de uma saída tranquila é subitamente interrompida pelo chamado de um guarda, que intercepta minhas malas e me guia até a sala de exames. A breve conversa após a inspeção gira em torno de políticas antidrogas e advertências contra a venda de armas de fogo ou joias valiosas. A busca por tais itens em minha mala, porém, condiciona a abertura do pequeno tubo que protegia papéis e telas, os quais subitamente me torno não apenas curador de uma exposição, mas também autor de tais pinceladas e escolhas estéticas. A pergunta sobre o valor e o destino das peças só é interrompida pela chegada de uma segunda oficial, uma mulher de pele escura e hijab, que parece interessada na imagem abstrata estendida sobre a mesa de exame. Ela expressa grande apreço pela pintura e logo começa a identificar signos da abstração, deduzindo os motivos que influenciam a escolha de cores e formas. Ao agradecer o olhar e a interpretação, ela afirma, e nunca esquecerei: “Acho que gostei porque também vim de um lugar tropical”. Durante poucos segundos, habitamos um mesmo terreno. No desejo de multiplicar tais cores e formas, segui meu destino final, carregando os efeitos de pequenos delitos guiados por uma eterna recusa à fixidez.
Lucas Albuquerque.