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Rosana Paulino: Novas Raízes
↪ Casa Eva Klabin, RJ
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Novas Raízes


Rosana Paulino

Casa Eva Klabin, RJ/BR
Set. 2024 - Jan. 2025

Texto Curatorial

De um lado, o jardim: local de repouso e meditação sob a égide da botânica, com seu poder regenerativo que nos afasta da dureza da cidade. Situado na parte externa da casa da colecionadora Eva Klabin (1903–1991), integra plantas como o guaimbé, o lírio-amarelo-dos-pântanos, a comigo-ninguém-pode, a flor-de-coral e outras espécies de clima tropical. O projeto de execução e manutenção, datado de julho de 1975 e assinado pelo escritório do paisagista Roberto Burle Marx, não esconde que o espaço foi produzido à imagem e semelhança do homem, seguindo o estilo de sua época. O jardim não é, portanto, a natureza em formato reduzido, mas conta com o seu esquema simbólico próprio. Aqui, torna-se o elemento sobre o qual repousa a paisagem domesticada, ordenada e enquadrada pelas paredes de vidro da casa que se abrem para ela. Reflete a busca pela alegria e mansidão almejadas por sua antiga dona. Nunca, contudo, adentra o recinto do saber e da racionalidade, o interior.

Do outro lado, a mata. Aos fundos do terreno, uma escadaria leva para o inebriante resquício de uma Mata Atlântica sobrevivente, pouco alterada pela ação humana, onde enormes filodendros, lírios-da-paz, Alpinias purpurata e outras espécies crescem de maneira desordenada e espontânea. Sem o limite da moldura e da mão que poda, a natureza é percebida na figura do selvagem, produzindo horror pela desmesura daquilo que foge ao controle humano. Tal é o esforço da paisagem — e, portanto, dos jardins: substituir sua prima indomada por um análogo civilizado, consciente de seu lugar na hierarquia em que o homem converge ao centro da composição. Assim se desdobra toda uma história da arte (com sua natureza pitoresca, afoita à sensibilidade de uma aristocracia europeia), das ciências (que insiste na supremacia da inteligência de 0,4% de vida animal em detrimento de 83% de matéria botânica), e da racialidade (que subjuga formas de vida não brancas a violências de dominação e extirpação análogas às do biossistema).

É nessa aliança tripartida que Rosana Paulino investiga as forças da simbiose do corpo negro junto das plantas. Mediante uma extensa e cuidadosa pesquisa realizada ao longo do ano no jardim e na coleção de Eva, a artista invoca para o espaço privado a memória de um mutualismo, um relacionamento entre espécies distintas. Mulheres-plantas, nascidas do encontro da mulheridade amefricana com as folhas sagradas, resguardam a passagem de recintos da casa, enquanto recortes e representações fotográficas de pessoas escravizadas no Brasil convivem com imagens da vida botânica. Trata-se de seres que não só testemunharam a violenta colonização mas também atuam hoje como curandeiros do trauma brasileiro. É através da celebração da ancestralidade e da fé no axé, do debate sobre a colonialidade e da defesa de uma escuta dos ensinamentos da natureza que Paulino propõe um vislumbre possível de futuro.

***

Se, no primeiro andar, a botânica nos conduz pulsando em força e pujança, em cima ela nos aguarda em tom de questionamento. Recepcionando o visitante que sobe as escadas, Paraíso tropical (2017) sutura um corpo social montado a partir de ilustrações da fauna e da flora brasileira, estudos antropométricos eugenistas e fotografias de mulheres negras. A composição ressoa, aos olhos europeus do século XIX, o estudo dos seres viventes que se apresentavam como obstáculo à civilidade — neste caso, a distinção entre o humano e o não humano severamente violado pela experiência da escravidão —, enquanto tece uma crítica acerca dos parâmetros que formam nossos campos sociais, científicos e artísticos. A obra se junta a outras que, no segundo andar, travam um debate sobre o lugar da mulher negra na esfera privada.

Ao fim do percurso, no quarto, duas instalações prestam reverência às amas de leite: mulheres negras que eram obrigadas a dar seu leite materno ao bebê branco em vez de amamentar seus próprios filhos. A posição, naturalizada até a abolição da escravatura no Brasil, foi imortalizada em registros fotográficos produzidos pela elite. Neles, as amas posavam junto dos seus “pequenos senhores” por minutos a fio, imóveis. O caso de Mônica é uma exceção em virtude da conservação de seu nome próprio, que acompanhou suas fotografias não em uma, mas em duas ocasiões ao decorrer de sua vida: a primeira em 1860, por João Ferreira Vilela, e a segunda entre 1877 e 1882, por Alberto Henschel. Vestida em trajes de luxo, Mônica é retratada jovem, ao lado de um menino, e anos depois, mais velha, carregando cabelos brancos e marcas de expressão obtidas pela dureza da sua condição. Mantida na família como ama-seca após alimentar os descendentes de seus algozes, deduz-se que ela tenha alcançado o direito de permanecer em seus aposentos depois de décadas de serviço. É no cerne de uma fotografia familiar, cuja tensão de tais violências coloniais se instaura, que os olhos penetrantes e a postura altiva de Mônica saltam como um levante de resistência e, ao seu modo, um verdadeiro ato de resiliência.

Hoje, Rosana reserva para ela – e para tantas mulheres, suas ancestrais em memória e vida – um espaço de descanso. No movimento forçado que as trouxe até estas terras, há, enfim, a possibilidade de assentar e formar as raízes de um novo amanhã. Aqui, novamente, temos muito a aprender com as plantas: em Nevada, nos Estados Unidos, a espécie Pinus longaeva representa a árvore mais antiga de que se tem registro no mundo, ultrapassando a marca de 4.600 anos. Nascendo até 2.500 metros acima do nível do mar, tais pinheiros se desenvolvem no limite do possível: o solo, de origem dolomita, é tão pobre em água e nutrientes que as árvores crescem atrofiadas e retorcidas. Esses seres elaboraram tecnologias de sobrevivência e longevidade em meio à adversidade. Suas irmãs, encontradas na Califórnia, não chegam nem perto dos recordes encontrados nas montanhas brancas.

Entre as marcas e suturas do trauma histórico e as informações carregadas nas raízes das árvores, rotas de sobrevivência e estratégias de cura são compartilhadas. Saibamos escutar as mulheres-plantas.

Lucas Albuquerque 

curadoria e pesquisa

lucasalbuquerques@gmail.com