Páginas para um tempo em branco
Marcos Roberto
Acompanhamento de residência artística e texto crítico
Galeria Movimento, RJ/BR
Jun. 2023
Texto Curatorial
Imagem é testemunho. Ao demarcar
um ponto histórico, social, artístico, econômico e político, aquilo que vemos
nos exige devolver um diálogo no qual as negociações dos discursos que se
estabelecem constroem acordos entre o sentido e o visto. Partindo dessa
premissa, as pinturas do paulistano Marcos Roberto nos conduzem à reflexão de que
o horizonte daqueles que por tanto tempo viveram à margem da dignidade mudou.
Resultado de lutas que atravessam gerações, o chamado “Novo Poder” é, antes de
mais nada, uma nova partilha do comum que passa pela alteração do sensível.
A série de trabalhos que nomeia sua individual Páginas para um tempo em branco (2022-2023) constrói-se em torno do metal – matéria-prima do seu antigo ofício como metalúrgico – que se emancipa de seus fins puramente funcionais para se tornar o suporte no qual se inscrevem outras possibilidades de futuro. Neles, é recorrente a presença de pessoas racializadas que devolvem ao espectador um olhar vidrado, nunca apaziguado, como que cristalizadas no cânone compositivo elaborado em 1938 por Tarsila do Amaral na pintura Trabalhadores. Se a obra da modernista já apresentava o corpo não branco como a massa proletária que sustentava o ideal desenvolvimentista moderno, separando-o diametralmente do trabalho intelectual como forma de ascensão social, a massa apresentada por Roberto tem tons de pele ainda mais escuros, ressaltando a desigualdade sociorracial vivida no Brasil, especialmente no que tange aos corpos mais retintos. A composição, porém, não sustenta o próprio peso e se rasga, deixando revelar em seu avesso marcos da história colonial que formam a tessitura da população. Entre a chegada dos colonizadores portugueses às terras indígenas e um carro de polícia em marcha, o verso da imagem se projeta para baixo, num rasgo dramático que abre caminho para outra cena, desta vez ao fundo: um jovem negro dentro de um ambiente escolar se debruça em seu caderno, tendo total controle do lápis em sua mão. Escreve no limiar entre o papel que cai à sua frente em completo desajuste com um passado em falência e aquele que apoia sobre sua carteira.
Já em seu novo conjunto de pinturas de pequeno formato que integram a série supracitada, Marcos funda sua prática na interseção entre a escuta, a arte-educação e a pesquisa histórica. Realizadas durante a residência do artista no Instituto Inclusartiz, as placas de metal retornam, pintadas de modo a simular folhas de papel pautado, que funcionam como tábula rasa para relatos e narrativas históricas ao incitar um macro-olhar a partir da eleição de biografias pessoais. Entre figuras já consagradas pela história, como Carolina Maria de Jesus e Darcy Vargas, e estudantes da rede pública de ensino – aproximação que ocorreu em virtude do período em que viveu no centro do Rio de Janeiro –, o artista conclama a relevância de rememorar aqueles que no passado produziram fendas onde era possível vislumbrar um outro amanhã, potência esta que resplandece ainda hoje nos rostos de jovens que carregam consigo a sobrevivência desse ideal.
Como forma de evocar seus semblantes, Marcos faz uso de três estilos visuais que se alternam entre a pintura a óleo de extensa paleta cromática, o delineado azul também a óleo simulando desenhos em caneta esferográfica e o traço errante em grafite, que ora se projeta em modo de rasuras e rascunhos, ora em parágrafos que tecem comentários biográficos. O artista os utiliza para condensar tempos, memórias, sonhos, desejos e relatos, articulando-os na transmutação da materialidade de seu suporte: as placas em aço, de aparente leveza, conferem à composição um certo ar de ingenuidade inerente a desenhos despretensiosos feitos em folhas descartadas – exercícios que reativam o passado numa aura fabulativa. Em seu diálogo franco com as figuras representadas, constata que, apesar de tais projetos de Brasil terem sido sufocados por uma política da escassez, seus germes ainda sobrevivem. A dimensão utópica dá lugar ao inegociável, estabelecido mediante o exercício da memória e do resgate histórico.
É exibido, ainda, um conjunto de pinturas em tela que colocam em pauta a presença de corpos negros dentro do sistema educacional, narrando histórias de sucesso e constante disputa. Em A nota aí, estudantes uniformizados exibem placas com numerações de três dígitos, todas acima de 780. Se antes um corpo negro segurando uma placa numérica era capaz de evocar fotografias policiais e pseudocientíficas que o atestavam como um desviante da lei ou um objeto de estudo antropológico, a cena pintada por Marcos atesta o potencial sucesso de uma política educadora e emancipadora, na qual os estudantes ostentam notas altas conquistadas em exames de vestibular. Os números que carregam não se impõem agora como o marcador social de uma condição imposta à cor da pele, mas atestam o mar de possibilidades de uma geração capaz de acessar um ensino de qualidade e gratuito. Já em A utopia lá no horizonte, vamos caminhar, o percurso seguido pela criança ao centro é rodeado por figuras que evidenciam a possibilidade de um novo caminho pautado pela independência dos seus semelhantes. A ideia de utopia retorna, visto que a mobilidade social produzida por um ensino de qualidade acessível e gratuito ainda é um dos grandes desafios de nossa conjuntura política.
Por fim, um conjunto de pinturas aponta para o lugar onde a arte e a educação se encontram, pautando a importância da entrada de corpos negros em espaços expositivos. Em Um dia vou ao MAR e Primeira vez no museu, o ponto de discussão da educação como ferramenta emancipadora desvia seu foco das escolas e instituições de ensino superior se volta para o museu público. Enquanto a primeira tela apresenta um grupo de alunos caminhando em direção ao Museu de Arte do Rio (MAR), cujo projeto de escola-museu é conhecido por suas políticas de acessibilidade e interação com grupos em vulnerabilidade social, a segunda contrapõe a figura de um menino negro no centro da composição com uma releitura das esculturas da série Ruínas de Charque, de Adriana Varejão, ambientada na Pina Luz, primeira sede da Pinacoteca do Estado de São Paulo. Para além de uma pura ficcionalização ou representação, as duas pinturas funcionam como testemunhos autobiográficos de um artista cuja presença em tais espaços ocorreu tardiamente. Apontam para um lugar de disputa, cujos símbolos devem ser construídos coletivamente. Retorna-se, assim, à relação entre produção de arte e abertura dos sentidos, na qual se funda não apenas a prática de Marcos Roberto, mas também os ideais que pautam as páginas de um outro tempo. Páginas em branco pela possibilidade de reescrita; nunca por esquecimento.
Lucas Albuquerque.
A série de trabalhos que nomeia sua individual Páginas para um tempo em branco (2022-2023) constrói-se em torno do metal – matéria-prima do seu antigo ofício como metalúrgico – que se emancipa de seus fins puramente funcionais para se tornar o suporte no qual se inscrevem outras possibilidades de futuro. Neles, é recorrente a presença de pessoas racializadas que devolvem ao espectador um olhar vidrado, nunca apaziguado, como que cristalizadas no cânone compositivo elaborado em 1938 por Tarsila do Amaral na pintura Trabalhadores. Se a obra da modernista já apresentava o corpo não branco como a massa proletária que sustentava o ideal desenvolvimentista moderno, separando-o diametralmente do trabalho intelectual como forma de ascensão social, a massa apresentada por Roberto tem tons de pele ainda mais escuros, ressaltando a desigualdade sociorracial vivida no Brasil, especialmente no que tange aos corpos mais retintos. A composição, porém, não sustenta o próprio peso e se rasga, deixando revelar em seu avesso marcos da história colonial que formam a tessitura da população. Entre a chegada dos colonizadores portugueses às terras indígenas e um carro de polícia em marcha, o verso da imagem se projeta para baixo, num rasgo dramático que abre caminho para outra cena, desta vez ao fundo: um jovem negro dentro de um ambiente escolar se debruça em seu caderno, tendo total controle do lápis em sua mão. Escreve no limiar entre o papel que cai à sua frente em completo desajuste com um passado em falência e aquele que apoia sobre sua carteira.
Já em seu novo conjunto de pinturas de pequeno formato que integram a série supracitada, Marcos funda sua prática na interseção entre a escuta, a arte-educação e a pesquisa histórica. Realizadas durante a residência do artista no Instituto Inclusartiz, as placas de metal retornam, pintadas de modo a simular folhas de papel pautado, que funcionam como tábula rasa para relatos e narrativas históricas ao incitar um macro-olhar a partir da eleição de biografias pessoais. Entre figuras já consagradas pela história, como Carolina Maria de Jesus e Darcy Vargas, e estudantes da rede pública de ensino – aproximação que ocorreu em virtude do período em que viveu no centro do Rio de Janeiro –, o artista conclama a relevância de rememorar aqueles que no passado produziram fendas onde era possível vislumbrar um outro amanhã, potência esta que resplandece ainda hoje nos rostos de jovens que carregam consigo a sobrevivência desse ideal.
Como forma de evocar seus semblantes, Marcos faz uso de três estilos visuais que se alternam entre a pintura a óleo de extensa paleta cromática, o delineado azul também a óleo simulando desenhos em caneta esferográfica e o traço errante em grafite, que ora se projeta em modo de rasuras e rascunhos, ora em parágrafos que tecem comentários biográficos. O artista os utiliza para condensar tempos, memórias, sonhos, desejos e relatos, articulando-os na transmutação da materialidade de seu suporte: as placas em aço, de aparente leveza, conferem à composição um certo ar de ingenuidade inerente a desenhos despretensiosos feitos em folhas descartadas – exercícios que reativam o passado numa aura fabulativa. Em seu diálogo franco com as figuras representadas, constata que, apesar de tais projetos de Brasil terem sido sufocados por uma política da escassez, seus germes ainda sobrevivem. A dimensão utópica dá lugar ao inegociável, estabelecido mediante o exercício da memória e do resgate histórico.
É exibido, ainda, um conjunto de pinturas em tela que colocam em pauta a presença de corpos negros dentro do sistema educacional, narrando histórias de sucesso e constante disputa. Em A nota aí, estudantes uniformizados exibem placas com numerações de três dígitos, todas acima de 780. Se antes um corpo negro segurando uma placa numérica era capaz de evocar fotografias policiais e pseudocientíficas que o atestavam como um desviante da lei ou um objeto de estudo antropológico, a cena pintada por Marcos atesta o potencial sucesso de uma política educadora e emancipadora, na qual os estudantes ostentam notas altas conquistadas em exames de vestibular. Os números que carregam não se impõem agora como o marcador social de uma condição imposta à cor da pele, mas atestam o mar de possibilidades de uma geração capaz de acessar um ensino de qualidade e gratuito. Já em A utopia lá no horizonte, vamos caminhar, o percurso seguido pela criança ao centro é rodeado por figuras que evidenciam a possibilidade de um novo caminho pautado pela independência dos seus semelhantes. A ideia de utopia retorna, visto que a mobilidade social produzida por um ensino de qualidade acessível e gratuito ainda é um dos grandes desafios de nossa conjuntura política.
Por fim, um conjunto de pinturas aponta para o lugar onde a arte e a educação se encontram, pautando a importância da entrada de corpos negros em espaços expositivos. Em Um dia vou ao MAR e Primeira vez no museu, o ponto de discussão da educação como ferramenta emancipadora desvia seu foco das escolas e instituições de ensino superior se volta para o museu público. Enquanto a primeira tela apresenta um grupo de alunos caminhando em direção ao Museu de Arte do Rio (MAR), cujo projeto de escola-museu é conhecido por suas políticas de acessibilidade e interação com grupos em vulnerabilidade social, a segunda contrapõe a figura de um menino negro no centro da composição com uma releitura das esculturas da série Ruínas de Charque, de Adriana Varejão, ambientada na Pina Luz, primeira sede da Pinacoteca do Estado de São Paulo. Para além de uma pura ficcionalização ou representação, as duas pinturas funcionam como testemunhos autobiográficos de um artista cuja presença em tais espaços ocorreu tardiamente. Apontam para um lugar de disputa, cujos símbolos devem ser construídos coletivamente. Retorna-se, assim, à relação entre produção de arte e abertura dos sentidos, na qual se funda não apenas a prática de Marcos Roberto, mas também os ideais que pautam as páginas de um outro tempo. Páginas em branco pela possibilidade de reescrita; nunca por esquecimento.
Lucas Albuquerque.