Perder o caminho
Raphael Couto
Curadoria
Galeria Mercedes Viegas, RJ/BR
Mar. 2022
Texto Curatorial
Em meio a uma região costeira, uma bandeira flamula ao léu, marcando a evidência da passagem de ventos além-mar. Amarrada a uma corda que se entrelaça sob estacas de madeira, o tecido se agarra ao único vestígio material que lhe finca a um espaço localizável, ainda que o resto de seu corpo se renda ao balanço convidativo de deixar-se ir. O esqueleto feito em madeiras e cordas, quase impassíveis sob o canto do vento, sugere uma arquitetura primária, próxima de uma completa dissolução, como indício de uma atividade humana, anterior à chegada daquele que filma a cena. O tremular do vídeo testemunha a presença de um corpo como um dado do encontro, que em seu registro recusa deliberadamente um esteticismo asséptico como resultado. Corpo este que controla e deixa ser controlado pelo entorno. Permite se perder.
O trabalho de Raphael Couto surge a partir de uma experiência de contato. Seu corpo, que por muito tempo se viu figurado e tornado objeto de investigação em seus trabalhos em performance e fotografia, sai de cena. Mas não deixa de se tornar presente. Ainda que as obras aqui apresentadas possam parecer, à primeira vista, uma ruptura com o que o artista vinha realizando, o desdobramento da pesquisa pode ser percebido pela maneira como Raphael agora assume o corpo como ponto de inflexão da formulação da imagem, na busca de paisagens e instantes tomados por uma presença que enquadra o entorno e o toma como fotografia, passível de ser desdobrada ou não em outras linguagens.
A série fotográfica “exercícios de paisagem”, aqui apresentada, institui um segundo ponto de aproximação com o que o cerca. Nestes trabalhos, Raphael sobrepõe registros de arquiteturas de casas, igrejas, fazendas e vilas encontradas em suas andanças. A sobreposição apresenta sempre duas tomadas do mesmo motivo fotográfico, com ligeiras alterações do ângulo, da altura da câmera ou, ainda, de sua posição e orientação. A ação resulta em imagens ora espelhadas, ora duplicadas, de tom onírico. Por vezes fantasiosas. Realizadas mediante uma proposição altamente experimental, na qual o artista abre mão de qualquer controle sobre o resultado final. São imagens provenientes de um corpo à deriva, cujo percurso não adestrado se revela não só como possibilidade de usufruto do entorno, mas como instituinte de mundos. Estes dão as caras em fotografias, capazes de condensar experiências de tempo e espaço canalizadas por um gesto desejante. Como o tecido que flamula, Raphael deixa seu corpo se guiar pela paisagem, fincando apenas resquícios de um instante passado no clique da câmera. O título da série alude, por si só, ao exercício e à experimentação, ressaltando o caráter livre e processual assumido.
Em “os pavões do campo de santana”, parte das passagens cotidianas de Raphael pelo Campo de Santana, situado no coração da Central do Brasil, cujo plano arquitetônico de influências parisienses da Belle Époque por si só já institui uma aspiração ao delírio. Povoado por pavões, cutias, gansos e outros animais, o parque convive com a desigualdade social dos moradores de rua que ocupam o espaço, evidenciando a ruína do projeto de higienização sitiado por Pereira Passos em 1906. Essas contradições são capturadas pelas fotografias que integram a série, onde os animais dividem o seu habitat com jornais, bancos mal preservados e o caos urbano, capturados de maneira despretensiosa pelo artista ao longo de suas andanças pelo centro do Rio de Janeiro, entre casa e ateliê. Interessado em uma certa dissecagem da cena, Raphael apresenta essas imagens próximas a tecidos de crochê, que se espelham nas manchas de cores da fotografia para construir blocos gráficos. A aproximação parece apontar para uma domesticação da imagem, visto que o crochê é utilizado comumente para ornamentar casas brasileiras – e, neste caso, obtêm seu dado de afeto pelo fato de terem sido feitos pela própria mãe do artista. A ideia de adorno pode servir tanto como leitura para os tecidos como para os animais que habitam os parques, enclausurados em um tempo-espaço onde o desejo de ser moderno coabita com a falha de um sistema político e econômico.
Por fim, incorpora-se também a esta exposição o objeto “por um livro de horizontes”, onde uma fita azul com resquícios de tinta é posicionada na altura dos olhos do espectador. O livro-objeto é desdobramento de uma performance anterior do artista, que se propõe a colocar essa mesma linha dentro de um espaço expositivo. A mancha resultante figura em seus rastros uma aspiração à paisagem, considerando os relevos e camadas criadas sobre a fita. Curiosamente, há uma certa duplicação do ponto de vista, como aqueles experienciados nas sobreposições fotográficas de Raphael, que embaralham as noções de cima e baixo. O trabalho reitera a preposição do artista, que apresenta a desorientação como princípio de experiência de contato com o mundo. Afinal, conforme já escrevia Clarice Lispector, perder-se também é caminho.
Lucas Albuquerque.