RE-UTOPYA
Hal Wildson
Prêmio Breeze + Embaixada Brasileira de Londres / UK
Set. – Out. 2024
Texto Curatorial
A (re-)Utopya selvagem de Hal Wildson
Conhecido por seus desenhos em datilografia, técnica de escrita que utiliza máquinas de escrever analógicas, o artista brasileiro Hal Wildson cria composições de caráter figurativo em grandes escalas. Ele descende de uma linhagem de artistas da década de 1950, como Augusto de Campos, Mira Schendel e Ruth Rehfeldt, cujos usos dessa tecnologia possibilitaram a experimentação simbólica intercambiante entre imagem, palavra e significado. Agora, Wildson enxerga no índice da obsolescência tecnológica a possibilidade de uma reescrita da história, borrando as fronteiras entre arquivo e memória, oficialidade e discurso, e, portanto, entre passado e presente. É nesse sentido que as matrizes das máquinas encharcam o papel, letra por letra, de tinta branca e vermelha, que não só referenciam a especificidade técnica do seu meio, como também aludem às pinturas em vermelho-urucum e preto-carvão dos povos indígenas latino-americanos, que frequentemente figuram os seus trabalhos.
Na série Utopia Original, movimentos de levante conduzidos por grupos socialmente marginalizados no curso da história brasileira se fundem em cenas de reivindicação da terra e da natureza, pelo reconhecimento e proteção dos direitos humanos e pela proliferação de novos ideais políticos, econômicos e sociais. Esses três pilares são reunidos através da ideia da “Re-utopya”, axioma em que o discurso e a prática do artista estão imbuídos. Ao longo de sua trajetória, Wildson estampou inúmeras bandeiras carregadas por mãos operárias e de povos autóctones, caso da obra "Reflorestar nossa gente" (2024), onde um levante carrega a faixa “reflorestar a nossa gente” (“reforest our people”). Juntam-se à composição de tom insurrecionista a imagem icônica de Manoel Moreira – símbolo de opressão social brasileira incidida sobre os pretos e pardos, impresso na bandeira “Seja Marginal, Seja Herói” (1966), do neoconcretista Hélio Oiticica –, cenas de retirantes em migração e de uma passeata a favor da demarcação justa das terras indígenas, onde uma seta ao contrário indica as recentes políticas adotadas pelo governo brasileiro em favor de um desenvolvimentismo empreendido às custas do genocídio ameríndio e da escassez do solo.
No trabalho de Wildson, a ideia de utopia é elaborada não apenas no campo simbólico das reivindicações, mas forma também a matéria sobre a qual suas composições florescem: datilografadas sobre folhas soltas dos livros “Utopia” (1516), de Thomas Moore, e “Utopia Selvagem” (1982), de Darcy Ribeiro, sua obra versa acerca da própria noção de utopia. Tornado substantivo a partir da publicação homônima do pensador político britânico, o termo “utopia” surge de relatos em tons idealistas sobre a existência de um sítio, Utopia (do grego outopos, lugar irreal), onde o apaziguamento das mazelas sociais e econômicas teria sido alcançado mediante uma balança equilibrada entre a religião e a justiça social, a liberdade e a necessidade dogmática, o culto à família e a luta contra a propriedade privada. Ressoando clássicos antigos, como os textos de Platão e Heródoto, esse título nos serve, por um lado, para realizarmos um diagnóstico dos ideais vislumbrados para uma Europa em transição do estado monárquico absolutista para o absolutismo republicano. Por outro lado, porém, é uma obra que nos assombra pela contaminação decorrente dos escritos dos viajantes, em especial de Américo Vespúcio, apresentando claras influências das cartas que ele escreveu durante seu primeiro contato com as Américas. Aliás, a descrição da ilha brasileira de Fernando de Noronha feita por Vespúcio serviu de roteiro ao livro de Moore, como afirma o historiador e crítico Afonso Arinos de Melo Franco. Cabe a nós concluirmos, desse modo, que o Brasil nativo exposto por Wildson é ancestral às terras de Utopia.
Foi segundo essa mesma compreensão que Darcy Ribeiro escreveu o provocativo “Utopia Selvagem”, em que narra as desventuras de Pitum, o preto gaúcho e ex-militar a serviço da guerra da Guiana quando sequestrado por um grupo de amazonas no norte do país. É na fricção das aparentes binaridades entre as ideias de civilização e selvageria, fé e paganismo, indígena e nativo, que o autor conduz as suas reflexões sobre as próprias bases de uma identidade nacional, colocando a contradição como o cerne de uma população formada pela colonização europeia, pela escravidão forçada do continente africano, pela subjugação das populações autóctones e pelo avassalador sincretismo que envolve tais encontros. Na espiral de sentidos conduzida pelo uso da ayahuasca e pela dissolução da racionalidade ocidental em favor da animalidade e da conexão com a natureza, a Utopia de Ribeiro é fortemente influenciada por Morus. Contudo, é no tom de escárnio que esta obra se diferencia de suas antecessoras, visto que a ilha dos povos indígenas encontrados por Pitum em nada remete à virtude dos ânimos da ilha de Utopia. Em vez disso, ela se entrega à economia da mata, onde a vida humana não ocupa o topo da cadeia, mas sim sua base, frente à desmesura da terra e do universo. É nesse sentido que, se as folhas dos livros valem para Wildson como ponto de partida para a formação de suas telas e para a discussão da própria ideia de Utopia, o que mais lhe interessa são as árvores vivas e esplendorosas que suas figuras circundam e que lutam para defender.
A utopia de Wildson é utopya, com Y. Marca de um reexame linguístico acerca das novas experimentações de corpo e gênero e das condições sociais e históricas que formam a cultura sul-americana, o uso do Y em lugar da vogal E ou I é adotado em prol de uma língua mestiça, o portunhol selvagem. Nascido na divisão entre as fronteiras do Brasil, do Paraguai e da Argentina, o portunhol consiste na junção entre as línguas hispano-americana e brasileira; a saber, o guarani, o castelhano, o português e o inglês.. Neste idioma, que conserva “uma antropofágica liberdade de linguagem aberta ao mundo” (Douglas Diegues, em “(Tríplices) Fronteiras Literárias”, 2011), os processos de hibridização relativizam a própria noção de pureza, e é nesse Brasil que Hal Wildson mergulha suas letras em vermelho e preto. Conjugada ao prefixo Re-, que dá nome à série de trabalhos aos quais a obra aqui presente se integra, o artista convoca à retomada destes exercícios de formação política e social. Ainda que tal apelo, atrelado ao elemento designativo de repetição, possa prenunciar, em um primeiro momento, o retorno de horizontes políticos idealistas que já não cabem à contemporaneidade esquizofrênica que nos rodeia, é o uso do Y na bandeira Re-utopya que recusa a reincidência da história como farsa, como advertido por Karl Marx. Trata-se, desta vez, da defesa de uma liberdade antropofágica, a partir da qual Wildson anuncia o levante de um novo horizonte.
Lucas Albuquerque.
Conhecido por seus desenhos em datilografia, técnica de escrita que utiliza máquinas de escrever analógicas, o artista brasileiro Hal Wildson cria composições de caráter figurativo em grandes escalas. Ele descende de uma linhagem de artistas da década de 1950, como Augusto de Campos, Mira Schendel e Ruth Rehfeldt, cujos usos dessa tecnologia possibilitaram a experimentação simbólica intercambiante entre imagem, palavra e significado. Agora, Wildson enxerga no índice da obsolescência tecnológica a possibilidade de uma reescrita da história, borrando as fronteiras entre arquivo e memória, oficialidade e discurso, e, portanto, entre passado e presente. É nesse sentido que as matrizes das máquinas encharcam o papel, letra por letra, de tinta branca e vermelha, que não só referenciam a especificidade técnica do seu meio, como também aludem às pinturas em vermelho-urucum e preto-carvão dos povos indígenas latino-americanos, que frequentemente figuram os seus trabalhos.
Na série Utopia Original, movimentos de levante conduzidos por grupos socialmente marginalizados no curso da história brasileira se fundem em cenas de reivindicação da terra e da natureza, pelo reconhecimento e proteção dos direitos humanos e pela proliferação de novos ideais políticos, econômicos e sociais. Esses três pilares são reunidos através da ideia da “Re-utopya”, axioma em que o discurso e a prática do artista estão imbuídos. Ao longo de sua trajetória, Wildson estampou inúmeras bandeiras carregadas por mãos operárias e de povos autóctones, caso da obra "Reflorestar nossa gente" (2024), onde um levante carrega a faixa “reflorestar a nossa gente” (“reforest our people”). Juntam-se à composição de tom insurrecionista a imagem icônica de Manoel Moreira – símbolo de opressão social brasileira incidida sobre os pretos e pardos, impresso na bandeira “Seja Marginal, Seja Herói” (1966), do neoconcretista Hélio Oiticica –, cenas de retirantes em migração e de uma passeata a favor da demarcação justa das terras indígenas, onde uma seta ao contrário indica as recentes políticas adotadas pelo governo brasileiro em favor de um desenvolvimentismo empreendido às custas do genocídio ameríndio e da escassez do solo.
No trabalho de Wildson, a ideia de utopia é elaborada não apenas no campo simbólico das reivindicações, mas forma também a matéria sobre a qual suas composições florescem: datilografadas sobre folhas soltas dos livros “Utopia” (1516), de Thomas Moore, e “Utopia Selvagem” (1982), de Darcy Ribeiro, sua obra versa acerca da própria noção de utopia. Tornado substantivo a partir da publicação homônima do pensador político britânico, o termo “utopia” surge de relatos em tons idealistas sobre a existência de um sítio, Utopia (do grego outopos, lugar irreal), onde o apaziguamento das mazelas sociais e econômicas teria sido alcançado mediante uma balança equilibrada entre a religião e a justiça social, a liberdade e a necessidade dogmática, o culto à família e a luta contra a propriedade privada. Ressoando clássicos antigos, como os textos de Platão e Heródoto, esse título nos serve, por um lado, para realizarmos um diagnóstico dos ideais vislumbrados para uma Europa em transição do estado monárquico absolutista para o absolutismo republicano. Por outro lado, porém, é uma obra que nos assombra pela contaminação decorrente dos escritos dos viajantes, em especial de Américo Vespúcio, apresentando claras influências das cartas que ele escreveu durante seu primeiro contato com as Américas. Aliás, a descrição da ilha brasileira de Fernando de Noronha feita por Vespúcio serviu de roteiro ao livro de Moore, como afirma o historiador e crítico Afonso Arinos de Melo Franco. Cabe a nós concluirmos, desse modo, que o Brasil nativo exposto por Wildson é ancestral às terras de Utopia.
Foi segundo essa mesma compreensão que Darcy Ribeiro escreveu o provocativo “Utopia Selvagem”, em que narra as desventuras de Pitum, o preto gaúcho e ex-militar a serviço da guerra da Guiana quando sequestrado por um grupo de amazonas no norte do país. É na fricção das aparentes binaridades entre as ideias de civilização e selvageria, fé e paganismo, indígena e nativo, que o autor conduz as suas reflexões sobre as próprias bases de uma identidade nacional, colocando a contradição como o cerne de uma população formada pela colonização europeia, pela escravidão forçada do continente africano, pela subjugação das populações autóctones e pelo avassalador sincretismo que envolve tais encontros. Na espiral de sentidos conduzida pelo uso da ayahuasca e pela dissolução da racionalidade ocidental em favor da animalidade e da conexão com a natureza, a Utopia de Ribeiro é fortemente influenciada por Morus. Contudo, é no tom de escárnio que esta obra se diferencia de suas antecessoras, visto que a ilha dos povos indígenas encontrados por Pitum em nada remete à virtude dos ânimos da ilha de Utopia. Em vez disso, ela se entrega à economia da mata, onde a vida humana não ocupa o topo da cadeia, mas sim sua base, frente à desmesura da terra e do universo. É nesse sentido que, se as folhas dos livros valem para Wildson como ponto de partida para a formação de suas telas e para a discussão da própria ideia de Utopia, o que mais lhe interessa são as árvores vivas e esplendorosas que suas figuras circundam e que lutam para defender.
A utopia de Wildson é utopya, com Y. Marca de um reexame linguístico acerca das novas experimentações de corpo e gênero e das condições sociais e históricas que formam a cultura sul-americana, o uso do Y em lugar da vogal E ou I é adotado em prol de uma língua mestiça, o portunhol selvagem. Nascido na divisão entre as fronteiras do Brasil, do Paraguai e da Argentina, o portunhol consiste na junção entre as línguas hispano-americana e brasileira; a saber, o guarani, o castelhano, o português e o inglês.. Neste idioma, que conserva “uma antropofágica liberdade de linguagem aberta ao mundo” (Douglas Diegues, em “(Tríplices) Fronteiras Literárias”, 2011), os processos de hibridização relativizam a própria noção de pureza, e é nesse Brasil que Hal Wildson mergulha suas letras em vermelho e preto. Conjugada ao prefixo Re-, que dá nome à série de trabalhos aos quais a obra aqui presente se integra, o artista convoca à retomada destes exercícios de formação política e social. Ainda que tal apelo, atrelado ao elemento designativo de repetição, possa prenunciar, em um primeiro momento, o retorno de horizontes políticos idealistas que já não cabem à contemporaneidade esquizofrênica que nos rodeia, é o uso do Y na bandeira Re-utopya que recusa a reincidência da história como farsa, como advertido por Karl Marx. Trata-se, desta vez, da defesa de uma liberdade antropofágica, a partir da qual Wildson anuncia o levante de um novo horizonte.
Lucas Albuquerque.