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Reparar Horizontes, Convergir Gestos


Clara Machado, Maria Baigur, Pedro Carneiro e Raphael Couto.

Projeto de curadoria e pesquisa
Oásis, Rio de Janeiro
Nov. - Dez. 2021

Texto Curatorial

Como se mover em um mundo cujos horizontes tornaram-se, ao olhar de quem vê de dentro da neblina, obscuramente turvos? Frente à esta pergunta, a exposição “REPARAR HORIZONTES, CONVERGIR GESTOS” agrupa trabalhos dos artistas que ocupam o Centro Cultural OASIS – Clara Machado, Maria Baigur, Pedro Carneiro e Raphael Couto. A curadoria estabeleceu quatro pontos de interesse que nomeiam esta exposição, situando a prática dos quatro artistas como interferências na percepção sensível do mundo. O eixo central do nosso recorte, contudo, funda-se na ideia de horizonte – seja em seu significado objetivo, seja em sua força como figura de linguagem. Enquanto alguns trabalhos presentes nesta seleção dialogam de modo direto com a noção de horizonte como a linha que se estende à vista, outros pensam o horizonte na figuração de perspectivas de futuros: aparições que sugerem outras possibilidades de vivência e reflexão.

Se a ideia objetiva de horizonte pressupõe um ponto de estabilidade, a maneira como Raphael Couto conjuga esses dois polos em sua pesquisa aponta uma certa dubiedade. Os trabalhos aqui presentes se firmam como arranjos entre corpo e natureza, que buscam encontrar um estado de equilíbrio nesta simbiose. As imagens resultantes dessas ações, contudo, se valem de sobreposições e enquadramentos fechados que oferecem ao observador o desalinho provocado por diferentes pontos de visão. A noção de horizonte abordada no trabalho de Raphael se mostra, desse modo, efeito de uma fusão entre o interior e o exterior da experiência, conjugando a aproximação sensível de seu corpo às características físicas do cerrado. As duas imagens sobrepostas dão a ver uma terceira imagem, possibilitando à paisagem seu retorno como natureza: não em seu registro contido e domesticado pela fotografia, mas em seu rastro, que busca evidenciá-la em toda sua desmesura e expansão. Por outro lado, se o corpo parece ser o objeto de investigação por excelência das fotografias de Raphael, curiosamente ele se apresenta como material a ser transformado segundo a sua associação com o entorno, descartando a distinção entre figura e fundo.

Já Maria Baigur intenciona uma inflexão da ideia de horizonte a partir da obra “A Monstruosa”: telas de celulares coletadas nos arredores da cidade devolvem ao observador não imagens retro iluminadas de consumo, mas o seu próprio reflexo cindido no espelho negro trincado. Essa experiência fragmentada conjuga uma outra possibilidade de se apreender a vista: ao invés de uma reflexão capaz de costurar o mundo em unidade, devolve sua disjunção em imagens refletidas de maneiras diferentes em mil cacos. A exposição reúne também outras séries da artista cujas linhas desnudam corpos em consonâncias poéticas que mesclam a linguagem da fotografia, da poesia e do objeto. Se as imagens da série “Nós” e “Minotauro” parecem relutar com suas contenções nos vértices da moldura, sua libertação se perfaz justamente na profanação de uma pretensa pureza do meio: as fotografias são ora rasgadas, deixando revelar fragmentos de poesias escritas por outras mulheres, ora ocultadas, sendo amparadas por casulos construídos em fios vermelhos. A imagem da teia retorna a circundar a obra de Baigur; enquanto “A monstruosa” a sugere mediante a trama ocasionada pelas fissuras das telas de celular, a série “Nós” e “Minotauro” a evoca de maneira simbólica pela constituição de uma rede de amparo.

Se a trama evidenciada nas rachaduras das telas negras de Baigur propõe uma cisão com uma certa ideia de mundo, a teia de fios de cabelo transposta em monotipias feitas por Clara Machado aponta para uma experiência sublime, cuja aproximação com o dourado faz surgir imagens que podem ser vistas como nebulosas ou massas cósmicas. Os materiais que orbitam em torno de sua prática, no entanto, são originados a partir de uma relação com elementos que evocam o Memento Mori (expressão em latim que pode ser traduzida como “Lembra-te que morrerás”), como fios de cabelo da sua avó, ossos de animais mortos ou, ainda, rastros de sangue. Clara dialoga diretamente com as Vanitas, gênero de pintura natureza-morta tornada comum ao longo do século XVI até o início do século XVIII que buscava lembrar à burguesia em ascensão que os ganhos mundanos eram passageiros através da iconografia da morte. Contudo, diferentemente do seu uso para efeitos morais na tradição pictórica, os usos do dourado nas obras de Clara parecem fornecer uma outra perspectiva material para sua poética, promovendo uma reparação da imagem da violência em uma espécie de regozijo de vida. Seus trabalhos eclipsam um processo violento, presentificando-se como aparições que sugerem horizontes não de desamparo, mas de júbilo.

Os trabalhos de Pedro Carneiro também se costuram em uma ideia de reparação, mas no sentido ínfimo da vida cotidiana. Suas pinturas aqui reunidas enquadram partes de corpos negros, que ora reverenciam a força e a ancestralidade de seus cabelos, ora se concentram em detalhes de seus corpos. Nenhum deles encara o espectador. Estão todos absortos em seus próprios pensamentos, fitando o seu próprio horizonte. São emancipados de qualquer tentativa de contenção e objetificação do observador, reservando-lhe apenas seus fragmentos. A imagem ocasionada desse gesto, contudo, não torna suas forças e fragilidades menos cognoscíveis, mas demonstra que o reconhecimento do outro não está vinculado ao seu desnudamento. Ao fim, uma obra quase devolve o olhar, mas posiciona uma polaroid de um céu azul em frente ao seu rosto. O ato esvazia o rosto de suas feições, mas o imbui de um horizonte de possibilidades incapazes de serem obtidas por um retrato. Seguido a esse desejo de respiro, apresentam-se outras telas que representam céus em seu aspecto mais radiante. Elas nos lembram que, independentemente do sufocamento promovido pelo entorno, tornar os olhos ao céu sempre constitui uma saída e, portanto, uma mudança de horizonte.

Esta exposição se afirma como um olhar atento às pesquisas embrionárias dos quatro artistas, já que os presentes trabalhos apontam para um campo de experimentação a ser escavado nos próximos meses, conforme o desenrolar da ocupação no OASIS. Ou, ainda, durante o período expositivo, visto que o calendário programático prevê uma série de ocupações na vitrine que buscam estender as poéticas aqui apresentadas. Neste sentido, convergir gestos torna-se um ato curatorial por excelência, apontando costuras em processos tão singulares. O trabalho de curadoria, deste modo, não busca encerrar sentidos ou construir categorias, mas procurar as polissemias que, por vezes, se tocam. É entender que qualquer horizonte que se abra para a apreensão desperta outros horizontes.

Lucas Albuquerque.

curadoria e pesquisa

lucasalbuquerques@gmail.com