Em Cartaz

Rosana Paulino: Novas Raízes
↪ Casa Eva Klabin, RJ
Info & contato

exposições
ensaios

bio

Tábulas


Arthur Palhano

Texto crítico
Portas Vilaseca
Fev. 2024

Texto Curatorial

O Mago, o Cowboy e o Mágico

I. O MAGO

Para o filósofo e antropólogo Marcel Mauss (1872 - 1950), a magia “consegue substituir a realidade por imagens. Não faz nada ou quase nada, mas tudo faz crer”[1]. Ela é por si mesma apaixonada pelo concreto, dedicando-se a conhecer a substância das coisas. Com isso, prepara imagens, esculpindo, modelando, pintando, desenhando, gravando. O mago (palavra oriunda do antigo persa magus, "poder") teria o poder de trazer à luz as qualidades ocultas já inerentes à essência da matéria, abrindo-a para o seu horizonte potencial. Podemos estabelecer um paralelo entre tais termos e a prática escultórica de Michelangelo (1475 – 1564), que trabalhava grandes blocos de mármore pela subtração do excesso na crença em sua habilidade de libertar figuras que estariam ali aprisionadas. É certo que, de lá para cá, caminhamos muito no sentido de nos desvencilhar das conformidades estéticas idealistas do gênero clássico, buscando, inclusive, um reentrelaçamento entre arte e magia nas práticas contemporâneas.

Fazendo uso de tábuas de cerâmica, o carioca Arthur Palhano se aventura em um procedimento pictórico por escavação, transposto de sua prática em pintura a óleo elaborada ao longo dos últimos anos. Com a colaboração e o acompanhamento da ceramista Karla Portas, o artista troca o pigmento oleoso por engobe, criando gordas massas de barro colorido sobre a qual Palhano cava, camada por camada, como o faz um arqueólogo que delimita seu campo de interesse na busca por um determinado artefato. Ainda que a mudança possa parecer simples, já que a técnica do artista sobrevive e se adapta ao medium, as etapas de feitura implicam uma alteração substancial: enquanto a escavação em óleo permite maior controle em relação aos estratos de cor que se transferem para a imagem evocada, a queima da peça altera a paleta cromática do material cru, tornando o objeto final um resultado milimétrico proveniente dos jogos de camadas e do tempo de cozimento. A dupla renuncia ao seu ofício tornando-se magos na presença do fogo.

Surgem assim peças que brincam com a relação figura e fundo na ordem de sua própria formação – afinal, ainda que as formas se sobreponham às camadas de cores sólidas que saltam aos olhos, grande parte delas se formam nas entranhas, na elisão do seu próprio formato, enquanto outras, na supressão do entorno. Entre a mão da ceramista que prepara a tábua, a espátula do artista que escava os estratos e o calor que tudo contrai, vislumbramos a dança de gestos em ziguezague pela superfície – ora fruto do rastro obsessivo da escavação, ora da fina camada de engobe que se dilata e deixa revelar a cor ao fundo, numa belíssima conversa entre duas ordens de vida: a humana e a mineral. Faz-nos, ainda, perguntar: pintura ou relevo? A série estabelece um diálogo material e histórico que, diferentemente das telas de Palhano, tem menos a contribuir com a tradição pictórica europeia e mais com as culturas visuais sul-americanas. Em especial, as pré-colombianas, cujo entalhe lembra as escritas imagéticas e pré-cuneiformes em pedra e terracota, como as da cultura Chimu ou, em um campo expandido e de maior extensão, as linhas Nazca, desenhadas no deserto.




II. O COWBOY

Ao entrarmos no diálogo entre culturas materiais distintas, pressupondo a justaposição de suas imagens, voltemos nosso olhar para as figuras que emergem das séries de Palhano. Para isso, gosto de pensar na alegoria do cowboy, evocada no título de uma das peças e que organiza a separação regente deste texto. É recorrente a aparição de ícones da cultura pop na obra do artista e, nesta série, não é diferente. As tábuas carregam inscrições que remetem a símbolos de jogos de mesa (RPG), capas de discos de jazz, clichês do fim do milênio passado – como o sorvete de bola[2]– ou mesmo o símbolo mortal de veneno, comum nas HQs juvenis. Acredito que o cowboy seja um ponto culminante dessa discussão, tendo em vista a maneira como este condensa em sua raiz facetas que, de um modo ou de outro, são inerentes às figuras com as quais Palhano flerta em sua prática.

Figura proeminente do imaginário estadunidense e símbolo do crescimento econômico do oeste do país, o homem vaqueiro é popularizado durante o séc. XIX com a intensificação da cultura de massa – a saber, o rádio, o cinema, a publicidade e as histórias em quadrinhos. A profissão que, ao menos desde 1865, era constituída também por homens negros, mexicanos e de ascendência indígena, teve o seu desenvolvimento enquanto ideal mítico ao tornar-se um herói popular e uma das últimas sentinelas no parapeito do americanismo. Em seu individualismo rude, heroísmo migrante e masculinidade adornada, a alegoria utilizada de maneira ostensiva se entrecruza com a política de dominação cultural em imagens de homens brancos e seus cavalos. Elevados a uma escala sobre-humana em meados do séc. XX, tornaram-se portadores da bandeira do bem na luta contra o mal: defensores da moral puritana americana, dos ideais do trabalho, da defesa da família heteronormativa e das ações de povoamento. Tais valores, introduzidos por instituições dominantes da sociedade (como a indústria cinematográfica e seu capital), mostraram-se uma importante ferramenta de expansão e racionalização da hegemonia norte-americana em relação a atores sociais ao redor do mundo[3].

Não há dúvida de que o campo da pintura é, historicamente, um espaço de poder a serviço de uma cultura masculina, em grande parte heteronormativa, com a qual Arthur flerta mas também critica. A maneira como lida com símbolos tão banais e cotidianos é explicada pela passionalidade que envolve sua pesquisa em torno de um passado oitentista e noventista, filtrada pelas lentes das produções cinematográficas ou presente nas capas de LP que, amiúde, preenchem suas telas. Assim como o crítico que vos escreve, Palhano é um dos impactados culturalmente por um projeto de dominação cultural estadunidense já em crise ao fim do último milênio. Tal impotência fálica aflora na presença das figuras que representa: fadadas à impossibilidade de gozar de sua glória, repousam na sombra de uma nostalgia melancólica. Despidas do anseio de comunicar boas notícias do futuro, denunciar as agruras contemporâneas ou reavivar mitos, elas transitam entre paisagens sugestivas, exercícios formais ou agrupamentos de memórias esparsas, lacunares. Assim surge o cowboy do artista: representado apenas por seu chapéu, isolado, pairando em meio ao vazio. Ausente e cansado de galopar, ele se despe do peso de seu mito.




III. O MÁGICO

Em sua etimologia, as palavras mago e mágico derivam da mesma raiz linguística. Contudo, o entendimento moderno do segundo termo vem do francês Magique, utilizado para denominar a atividade tornada popular na França do séc. XVIII por nomes como Jean Eugène Robert-Houdin (1805 - 1871). Enquanto o mago tem seu fazer atrelado às forças da natureza, o mágico opera com práticas de ilusionismo ligadas às habilidades motoras. Seus truques visam fascinar e convencer o público de uma ação que foge ao comum. Ele é, antes de mais nada, um ilusionista, que pode ser visto tanto como um mero charlatão ou, como prefiro, aquele que se recusa a deixar de encantar o mundo. Por meio de artimanhas, o mágico suspende a ordem da razão.

Já a palavra imagem, segundo uma antiga etimologia, provém do latim imitari ("copiar, fazer semelhante”). O historiador e antropólogo francês Jean-Pierre Vernant afirma que foi só após um longo processo entre os séculos VI e V A.C. que a imagem passou a ser tida como um artifício imitativo que reproduz, ainda que sob um falso semblante, a aparência exterior das coisas. Conduzia-se, assim, a passagem entre a compreensão da figuração material como presentificação do invisível à pura imitação da aparição de algo ausente[4]. A imagem nada mais era do que uma ilusão figurativa de um modelo ideal, platônico, de uma forma divina e absoluta. O mundo em si era como um grande teatro de ilusões e o pintor, canalizador de tais modelos.

Passados séculos e diversas teorias da imagem, é curioso que ela ainda carregue consigo uma compreensão que referencia um externo: por um lado, está intimamente ligada a um referente; por outro, sua leitura depende do receptor que a observa[5]. O objeto e sua representação continuam conectados, ainda que pelas bordas difusas de um inconsciente subjetivo. Em suas figurações, artistas como Palhano não produzem um figurativismo que almeja uma imersão na cena representada, mas, mesmo assim, seduzem o espectador em um ato que recria cenas de um passado montado, editado. Sem cinismos, entretanto: alerto desde já que não se trata de um ato de charlatanismo, mas de um mergulho profundo em um inconsciente que se deixa entrever pelas brechas de figuras ordinárias. Afeito à própria beleza de seus truques, Palhano maneja as camadas de suas telas e tábuas sem o desejo de incorporar o modelo perfeito, arquetípico, que talvez só um mago pudesse conjurar. Está satisfeito com as farpas de suas criações.


Lucas Albuquerque.



[1] MAUSS, Marcel. Esboço de uma teoria geral da magia. In: Sociologia e antropologia. São Paulo: Cosac & Naify, 2003. p. 174.

[2] E por que não considerar essa uma das imagens de um Brasil em desenvolvimento da década de 60? Como canta Gal: "Você precisa tomar um sorvete na lanchonete / Andar com a gente, me ver de perto…"

[3] CASTELLS, Manuel. O poder da identidade. São Paulo: Paz e Terra, 2008. p. 24.

[4] VERNANT, Jean-Pierre. Entre mito e política. São Paulo: Edusp, 2002. pp. 295-308.

[5] Como afirma Lévi-Strauss, se a relação entre a imagem e seu referente fosse completamente cindida, estaríamos diante de um objeto de ordem linguística e não diante de uma imagem. CHARBONNIER, Georges. Arte, Linguagem, Etnologia: Entrevistas Com Claude Lévi-Strauss. São Paulo: Papirus, 1989.

Links e material adicional

curadoria e pesquisa

lucasalbuquerques@gmail.com