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Ultramar


Kika Carvalho

Casa Eva Klabin, RJ/BR
Dez. 2023 - Fev. 2024

Texto Curatorial

ULTRAMAR

Distribuída pela casa, a coleção de peças egípcias da Casa Museu Eva Klabin, uma das mais notáveis sobre o tema no Brasil, resguarda consigo o fôlego de uma civilização cujos vestígios materiais denotam uma cultura altamente complexa. Na esteira do exotismo intrínseco ao olhar que repousa sobre o Oriente e o continente africano, a coleção de Eva Klabin é constituída na década de 1950, posteriormente à descoberta da tumba de Tutancâmon em 1922. Este importante achado arqueológico é uma das poucas sepulturas reais encontradas intactas e desencadeou uma completa egitomania pelo mundo, ressoando na arquitetura, na fotografia, no cinema e nas artes visuais. O marco histórico forneceu arcabouço material e científico cuja recepção reforçava um desejo de busca pela origem espelhada em um outro, entendido como arcaico – como diria o historiador da arte alemão Aby Warburg, numa alegoria do inconsciente do tempo.

Curiosamente, a coleção de Eva Klabin se constitui de objetos que não são, contudo, provenientes de escavações arqueológicas oficiais. Guiada por especialistas em arte, a paulistana de alma carioca reuniu pouco mais de cinquenta objetos que revelam seu interesse por um tempo histórico alargado, que vai desde a Dinastia I até o período Ptolomaico. Entre eles, duas peças se destacam. A primeira é a Estela funerária de Tutemés (cerca de 1391 - 1353 a.C.), oriunda da tumba do Rei Tutemés IV, da Dinastia XVIII (1401-1391 a.C.), que possui como função religiosa apresentar o rei morto ao pós-vida, representando e sendo, por si mesma, uma oferenda devocional aos deuses.  Em sua parte inferior, observamos as figuras do soberano e sua esposa, trajados de gala e sentados diante de uma mesa de oferendas sobre a qual Tutemés estende a mão esquerda. Acima, vemos a cena em que o rei é representado de pé, com os braços erguidos em adoração ao deus Osíris, senhor e juiz da vida após a morte, portando sua típica coroa Atef e segurando em suas mãos o mangual e o cajado. Diante do santuário, uma mesa repleta de oferendas. Sobre as duas cenas, o sinal Shen, símbolo da eternidade, paira sob um cesto com o olho de Hórus, simbolizando poder e proteção. Um arco enlaça toda a placa. Parte das cores originais ainda permanecem na matéria. Em particular, um azul pulsa atrás de hieróglifos com o nome do casal real e uma prece endereçada a Osíris, "O Senhor da Terra Sagrada".

Um outro olho, tridimensional, testemunha os movimentos da história e repousa sobre os nichos da casa. O olho de máscara mortuária (304 a.C. - 395 d.C.) é fragmento de um touro sagrado mumificado composto por três elementos distintos montados para incrustação: pedras de calcário cristalino, obsidiana e lápis-lazúli. Este último desempenhava função simbólica privilegiada na sociedade egípcia, denotando a hierarquia social do indivíduo – devido ao alto custo de comercialização da pedra em virtude de sua escassez em solo egípcio e importação da Mesopotâmia –, e constituindo-se como significado religioso. Sua coloração intensa estabelecia um paralelo com o céu e o plano superior, integrando o conjunto hierárquico que simbolizavam os deuses: o ouro, metal divino que nunca enferruja, era visto como a carne dos deuses; a prata representava os ossos; o lápis-lazúli, por sua vez, era fino e delicado como os seus cabelos.

As relações formais, materiais e simbólicas que estabelecem uma ligação entre o Egito e a história da arte ocidental são calcadas na recepção da antiguidade clássica pelos gregos e romanos, mas não só isso. Na casa, as numerosas peças que representam a Virgem Maria apontam para o uso como pigmento pictórico do lápis-lazúli, material ainda muito caro nos dias de hoje, cujo valor, na época, era equivalente ao do ouro. O azul ultramar, obtido por meio da trituração do lápis-lazúli, tem sua origem etimológica no latim ultramarinus (além-mar). Entre os séculos XIV e XV, seu caminho de entrada na Europa se dava pela Itália a partir das minas do Afeganistão, refazendo assim as rotas utilizadas pelos egípcios durante a mineração da rocha. Essa circularidade territorial penetra no nome do pigmento e banha a história da arte na relação com o outro, aquele que se coloca para além do horizonte.

Sob as lentes do contemporâneo, tal recepção do além-mar adquire novos embates discursivos tanto no que tange à cultura simbólica egípcia e sua reverberação na Europa, quanto no plano material e historiográfico. Museus e coleções mundo afora refletem não só sobre a condição de chegada e permanência de objetos frutos da colonização, mas também revisam suas narrativas baseadas em um ocidente que se faz pela apropriação e fragmentação da história, submetendo o continente africano ao estigma da subalternidade. A noção do Egito como berço da civilização ocidental se fortalece pela figura do historiador e arqueólogo James Henry Breasted, que em publicações como Ancient Times, a History of the Early World (1916) eThe Conquest of Civilization (1926) assinalava erroneamente o norte da África e o sudoeste asiático como povoados por pessoas de pele clara, compreendido como "brancos". O Egito antigo deveria, sob distorção de tais lentes, ser parte constituinte da criação dessa civilização. Seus estudos tornaram-se canônicos para o currículo das universidades e nas pesquisas norte-americanas em um momento de ascensão do país, alastrando-se globalmente e sendo, gradualmente, assimilados. Fagulhas que prenunciavam o cheiro da fumaça que sentimos hoje podem, contudo, ser percebidas anos antes. No fim do século XIX, o pintor americano Edwin H. Blashfield realizava o mural A evolução da civilização (1890-1900) na Biblioteca do Congresso em Washington, D.C., estabelecendo uma progressão que se iniciava no Egito antigo e desembocava nas Américas.

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De que forma a cor pode funcionar como mote para uma investigação capaz de pautar relações não apenas materiais mas, também, históricas e sociais? Frente a esta questão, convidamos Kika Carvalho (Espírito Santo, BR, 1992) para a segunda edição do programa ÉDEN, que visa a interlocução do acervo da Casa Museu Eva Klabin com a produção contemporânea. Entre processos pictóricos e fotográficos, a artista examina a relação da cor azul como índice e marca de uma memória da negritude. Partindo de sua pesquisa acerca do azul na história material, Kika conecta a cor com a vista do horizonte banhado pelo mar da ilha onde nasceu e viveu. Fazendo uso desse dado afetivo, ela o incorpora como uma memória longínqua, que interpela tanto suas lembranças pessoais, como a história brasileira e suas relações além-mar na grande Kalunga – palavra da língua banto que significa lugar sagrado, de proteção.

Em pinturas e objetos que variam do realismo fotográfico à abstração formal, a artista cria imagens que versam sobre a condição da negritude no Brasil, unindo suas memórias às cenas do mundo. Figuras formadas de intenso azul ressoam o comentário "tão preto que chega a ser azulado", cujas pretensões dúbias se escondem sob a constatação de um desvio de cor. Imergindo seus personagens e a si mesma — afinal, boa parte das figuras femininas são quase autorretratos, com fisionomias que se iniciam pelo espelhamento das formas de sua criadora — no extremo dessa constatação, a artista dá a ver um mundo sob lentes por vezes azuladas, ressoando nelas uma ar nostálgico, fantasmal, de um tempo que se assemelha às fotografias de um passado distante. Em outras, despe-se da lente para contrastar a saturação de sua paleta com delicadas e numerosas variações de branco. Em ambos os empreendimentos, a radicalidade da proposição elimina o preto puro, fazendo do balanço cromático de suas telas um espectro que vai do branco mais claro ao azul mais intenso.

É comum a relação de espacialidade estabelecida entre as figuras de Kika e o mar, que parece funcionar como a nascente de um conjunto de vidas e narrativas que o circundam, mimetizando a história da artista, cuja vida tem o oceano como testemunha. Há, ainda, uma imagem que se repete em variações, com pessoas representadas de costas a encarar um fundo fraturado entre o mar e o horizonte. Voltando-se para o além, conjecturam ou, prefiro acreditar, conversam com aqueles que fizeram a travessia; voltam-se, também, para o meio pictórico, formado do pigmento além-mar e que conta o próprio nascimento de sua carne. A cena expõe o detalhe de trançados e texturas capilares adornadas com pendentes de cabelo que carregam narrativas que o oceano resguarda consigo, inscritas no cruzamento dos filetes das tranças. Nesse invólucro de poder cromático, vislumbramos os cabelos de deuses e deusas, respeitando o sistema de crenças egípcios.

Dentro do conjunto poético criado pela artista, a cianotipia, técnica de revelação manual para imprimir negativos monocromáticos em tons de azul, flerta com a fotografia. Kika se vale desse processo para produzir imagens nas quais luz e sombra imprimem signos, quase amuletos, de um mundo encantado novamente, capaz de reverter o fluxo linear do tempo. Este, por sua vez, abre um outro, espiralar, onde o presente revê o passado ou mesmo o refaz sob uma ideia de montagem – honrando, claro, a energia dos signos que evoca. Neste contexto, o pessoal e o coletivo se alimentam e se confundem. Estabelecem um reflexo poeticamente retorcido da aliança entre Brasil, África (especialmente Angola, onde a artista passou algumas semanas), e Europa. Alocados em meio à coleção de Eva Klabin, que por sua vez também remontou a história sob a ótica e as necessidades de seu tempo, propõem uma nova configuração.

A exposição Ultramar toma a casa-museu e sua história como combustível poético para realizar diálogos, sugerir deslocamentos conceituais nos objetos que encenam a vida da colecionadora e propor situações imersivas que funcionam como portais simbólicos para investigar novos modos de apreender e habitar este espaço. A presença do azul convida a uma nova percepção da coleção, reordenada de forma inédita para destacar as relações cromáticas desta cor no acervo, priorizando suas aparições nas sociedades orientais como um todo, e, principalmente, pensar como a coleção egípcia pode ser apresentada de maneira complexa e multifacetada. O percurso se encerra no quarto, onde um encontro íntimo se estabelece entre visitante e obra. Entre quatro paredes, a dama se apodera do aposento e se cobre, deixando de fora apenas seus olhos, revertendo a lógica de quem é visto e quem vê. Mais um olhar do lado de lá que se estabelece na relação de poder e eternidade, tal qual o olho de Hórus.

Lucas Albuquerque.

curadoria e pesquisa

lucasalbuquerques@gmail.com