Ultranírico
Felipa Queiroz
Curadoria
Galeria Asfalto
Set. 2024
Texto Curatorial
Ultranírico é mais que sonho. Trata-se de um espaço de criação que
parte da liberdade das imagens do inconsciente para potencializá-las em gestos
pictóricos e deslocamentos espaciais. É no desejo do esgarçamento que a artista
Felipa Queiroz forma a imagem: através da deformação caricaturesca de seus
temas de interesse, como a mitologia e a cultura pop, ela tece padronagens que
dão o ar da graça em pinceladas brutas e incontidas, construindo camadas de
cor, muitas vezes em tons de docilidade, que logo se desmancham no ar sobre a
brutalidade de quem não se deixa seduzir pelo virtuosismo. Há pouco de
acadêmico em seu processo, mas há muito de coragem. Na alquimia do seu ateliê, a
tinta acrílica e a tinta a óleo são misturadas com a tinta de parede, criando
uma qualidade arenosa pra composições que se assemelham à pintura em afresco.
Iniciada a obra no ambiente introspectivo do ateliê, ela só se completa quando submetida à inteligência espacial de Felipa. A tinta é tão importante em seu processo quanto as canaletas de aço, as rodas e roldanas, e outras tecnologias de ocupação inventariadas no desejo de conferir uma autonomia à obra que reclame do visitante mais do que a simples atividade contemplativa. Enquanto a técnica pictórica foge ao interesse da fatura gorda de tinta, achatando a tela à planaridade, sua espacialização a joga de volta à tridimensionalidade. A artista joga com a não funcionalidade de seu trabalho, fazendo da galeria um circuito onde imagens transmutam não apenas as superfícies – indo da abstração à figuração em poucos gestos de distância –, mas também a própria condição sine qua non do objeto, que pode vir a ser tanto coisa autônoma da arte quanto brinquedo de mover e reagrupar. No playground das formas hipertrofiadas de Felipa, a conjugação entre figura e fundo, plano e perspectiva, cor e desenho está condicionada a uma ideia de simulacro: despindo-se da seriedade de obedecer a uma essência ou qualidade intrínseca, os pigmentos, agrupamentos de pincelada ou mesmo o suporte que os amparam flutuam entre categorias que, de duras, têm apenas o limite do quadro ou o corte que fratura a composição.
Regida a partir da figura mitológica de Cérberus, o cão guardião de três cabeças que guardava as portas do reino dos mortos, Ultraníricopropõe um mergulho nas pinceladas revoltas de Felipa Queiroz. Para além da aparição feroz do rosto do monstro, que vez ou outra ameaça saltar das velaturas de tinta que o recobrem, o cão empresta o número 3 como ordem: enquanto a pintura Kinds of Kindness (2024) se utiliza da estrutura tripartida como forma de elaboração da composição, Cerberus/Gárgula suscita das três janelas circulares um efeito de mise-en-abyme: a tela dentro da tela. É menos por um capricho da artista do que por uma ideia de “tela total” — em que cada pintura é elemento formativo de um arranjo maior – que tal ordenação pode ser percebida em outros aspectos desta individual.
Dizem as boas línguas que Cérberus era um cão dócil na chegada ao Hades. Celebrava a entrada daqueles destinados ou que tinham interesse em por lá se aventurar. Sua ferocidade surgia, contudo, no momento em que alguém desejasse deixar as portas do reino dos mortos: os únicos que conseguiram passar ilesos por suas garras e dentes foram Héracles, Orfeu e Eurídice, Eneias, Psiquê e Ulisses. Tal movimento de entrada e saída se aplica sob condições análogas na pesquisa pictórica de Felipa. Em seu ato, a placidez do traço quase contínuo e econômico convive com a energia caudalosa de camadas que cobrem e recobrem cenas que, quando encontram novamente a luz do dia, é apenas por entre frestas — buracos de memória da fuga do submundo. Na aventura corajosa de quem entra e sai do reino da pintura sem medo de fechar as portas para um possível retorno, a artista apresenta em suas telas resquícios dessa viagem. E, diferentemente dos seis personagens gregos mencionados, Felipa nunca sai ilesa.
Lucas Albuquerque
Iniciada a obra no ambiente introspectivo do ateliê, ela só se completa quando submetida à inteligência espacial de Felipa. A tinta é tão importante em seu processo quanto as canaletas de aço, as rodas e roldanas, e outras tecnologias de ocupação inventariadas no desejo de conferir uma autonomia à obra que reclame do visitante mais do que a simples atividade contemplativa. Enquanto a técnica pictórica foge ao interesse da fatura gorda de tinta, achatando a tela à planaridade, sua espacialização a joga de volta à tridimensionalidade. A artista joga com a não funcionalidade de seu trabalho, fazendo da galeria um circuito onde imagens transmutam não apenas as superfícies – indo da abstração à figuração em poucos gestos de distância –, mas também a própria condição sine qua non do objeto, que pode vir a ser tanto coisa autônoma da arte quanto brinquedo de mover e reagrupar. No playground das formas hipertrofiadas de Felipa, a conjugação entre figura e fundo, plano e perspectiva, cor e desenho está condicionada a uma ideia de simulacro: despindo-se da seriedade de obedecer a uma essência ou qualidade intrínseca, os pigmentos, agrupamentos de pincelada ou mesmo o suporte que os amparam flutuam entre categorias que, de duras, têm apenas o limite do quadro ou o corte que fratura a composição.
Regida a partir da figura mitológica de Cérberus, o cão guardião de três cabeças que guardava as portas do reino dos mortos, Ultraníricopropõe um mergulho nas pinceladas revoltas de Felipa Queiroz. Para além da aparição feroz do rosto do monstro, que vez ou outra ameaça saltar das velaturas de tinta que o recobrem, o cão empresta o número 3 como ordem: enquanto a pintura Kinds of Kindness (2024) se utiliza da estrutura tripartida como forma de elaboração da composição, Cerberus/Gárgula suscita das três janelas circulares um efeito de mise-en-abyme: a tela dentro da tela. É menos por um capricho da artista do que por uma ideia de “tela total” — em que cada pintura é elemento formativo de um arranjo maior – que tal ordenação pode ser percebida em outros aspectos desta individual.
Dizem as boas línguas que Cérberus era um cão dócil na chegada ao Hades. Celebrava a entrada daqueles destinados ou que tinham interesse em por lá se aventurar. Sua ferocidade surgia, contudo, no momento em que alguém desejasse deixar as portas do reino dos mortos: os únicos que conseguiram passar ilesos por suas garras e dentes foram Héracles, Orfeu e Eurídice, Eneias, Psiquê e Ulisses. Tal movimento de entrada e saída se aplica sob condições análogas na pesquisa pictórica de Felipa. Em seu ato, a placidez do traço quase contínuo e econômico convive com a energia caudalosa de camadas que cobrem e recobrem cenas que, quando encontram novamente a luz do dia, é apenas por entre frestas — buracos de memória da fuga do submundo. Na aventura corajosa de quem entra e sai do reino da pintura sem medo de fechar as portas para um possível retorno, a artista apresenta em suas telas resquícios dessa viagem. E, diferentemente dos seis personagens gregos mencionados, Felipa nunca sai ilesa.
Lucas Albuquerque