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Rosana Paulino: Novas Raízes
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Ustão


Ayla Tavares

Projeto de pesquisa e curadoria
Casa-museu Eva Klabin, RJ/BR
Mai. - Jun. 2023

Texto Curatorial


Ustão nasce de um sonho. A artista carioca Ayla Tavares relata a aparição de uma vela que queimava ao contrário, uma cena sonhada durante o auge da pandemia de COVID-19 no ano de 2020. A imagem enigmática, que beira o absurdo pela impossibilidade de consumação da vela em seu desafio gravitacional, mostra-se muito recorrente, contudo, em simpatias para desfazer quebrantos, retornando-o ao seu emissor ou anulando-o. Funcionou, em um primeiro instante, como ferramenta de autodefesa contra o caos externo vivenciado naquele momento.

O que nasceu como imagem onírica agora toma corpo e rasteja dentro de uma outra casa, fruto de um sonho tão delirante quanto o da artista. Durante a década de 1980, Eva Klabin decide unir colecionismo ao desejo de fundar um acervo público capaz de circunscrever séculos da cultura material humana, do antigo Egito até o início do século XX. Entre Ocidente e Oriente, sua vasta coleção e admirável empreitada dá o tom de um gosto de época fincado nos cânones de uma história da arte eurocêntrica, ainda que aberta a vertentes não europeias em sua radical alteridade. A casa criada com função totalizante adquire na contemporaneidade novas leituras e intervenções, lembrando à Eva que não somos senhores em nosso próprio lar.

Resultado da pesquisa guiada ao longo de oito semanas pela coleção, o conjunto que forma Ustão é pautado, em um primeiro momento, pelo interesse da artista em torno do conjunto de candelabros britânicos reunidos na Sala de Jantar, mas que se espalha, logo em seguida, por outros suportes que integram os ambientes. Curiosamente, a atração surge não pelas qualidades estéticas das peças selecionadas, mas pelo mise-en-scène da casa, cujo mínimo arranjo tem como objetivo recriar as condições ideais em que a vida de sua fundadora se desenrolou. Basta apurar os ouvidos, ouriçar o tato, lançar o olhar por detrás do véu do visível: lá estão, mais uma vez, as taças a tilintar, a prataria a arranhar a porcelana branca, o burburinho do arrastrar de cadeiras. E o fogo emana do centro de cada vela, encantando a todos com sua perigosa dança em combustão.

Abra novamente os olhos. Cá estamos hoje, arraigados neste cenário. A cera intacta da vela é apenas um dos índices de que o tempo tornou a virar. Cristalizou-se. Como seguir o rastro da fumaça quando nem mesmo o pavio indica a sua possibilidade?

A montagem aqui apresentada de Ustão, série iniciada em 2022 por Ayla, adquire novas incursões fundadas no desejo de investigar o fogo em sua condição ritualística. As primeiras aparições tomam vida em peças de grandes dimensões produzidas em cerâmica cozida e esmaltada na cor branca. Sua base surge em forma expansiva e circular, enquanto o caminho que leva às pontas torna-se gradativamente tortuoso. A mutação ocorre com o surgimento de tentáculos curvilíneos cujas extremidades se transmutam uma segunda vez, agora em materialidade: a cerâmica dá lugar à cera pálida, de onde se projetam velas voltadas para os lados ou levemente para baixo. Erguidos em finas estruturas de aço, parecem levitar, em franca contradição ao seu peso aparente. Suas formas subsequentes, comissionadas a convite deste programa, dispensam a estrutura e materializam-se em configurações de médio a pequeno porte, traçando uma semelhança visual mais direta com os candelabros. Como efeito, as velas inclinadas perturbam a montagem original da casa, já que cada peça ocupa a posição de candelabro pertencente à coleção. A artista opera, portanto, a metamorfose de todos os objetos de caráter funcional que sustentam velas a serviço da irrupção de outras narrativas.

Somada à estranheza dos deslocamentos, gavetas se abrem deixando entrever na penumbra um outro imaginário. Em seu interior, placas brancas carregam formas e ranhuras que evocam uma nova malha espaço-temporal. Acima de arabescos, pequenas janelas emergem, revelando desenhos de esculturas que compõem a série Ustão. Ora acesas, ora apagadas. Vistas de cima, as composições aludem a mapas cujas janelas pinçam, aqui e acolá, o vislumbre da forma. Tratam-se de chamadas de volta para o sonho; talvez o mesmo que içara Ustão à vida. Por vezes lido como terra, outras como mar, o último plano aponta tanto para a relação arqueológica cultivada pela artista, que traça uma genealogia direta com os objetos usualmente encontrados em expedições científicas – em suma, peças esculpidas em cerâmica, cuja numerosa recorrência as identificam como o "objeto eterno" – quanto para sua prática de modelagem extremamente intuitiva e primária, sugerindo uma memória arcaica do corpo com a matéria em questão. Os mesmos arabescos, entretanto, se pensados como imagem abstrata do fluxo do inconsciente, distanciam Ayla do arquétipo do arqueólogo e a consagram como uma conjuradora. O limiar entre as duas figuras se dilui, porém, na análise da raiz etimológica das palavras: arché, termo grego surgido no período pré-socrático, designa a substância originária, fundadora de um sistema. Dentro dessa leitura, a prática de Ayla revira o solo em busca do sonho como ponto inicial, como instaurador de mundos cuja impossibilidade de compreensão lógica funda a ordem. Faz-se aqui o seu quebra-feitiço.

Buscando trazer o acervo como o norteador da pesquisa em que esta individual se origina, duas peças são destacadas em virtude de sua relação direta com o fogo. Erguendo-se ao centro da Sala Renascença, o Grou tailandês, produzido no século XIX em bronze fundido, empina sua cauda cheia e comprida, cujo formato e ondulação lembram uma chama. Símbolo de longevidade para o Budismo Tibetano, a ave tinha como função transportar almas até o paraíso. Já na Sala Chinesa, uma escultura de data desconhecida, também em bronze e oriunda da China, figura o Maitreya em seu estado de iluminação, envolto por um portal em chamas que o confirma como o futuro Buda. Ambas demarcam o início e o fim do percurso dentro da individual da artista, fazendo surgir, senão o próprio fogo em presença, seu rastro.

curadoria e pesquisa

lucasalbuquerques@gmail.com