Gamboa: Nossos Caminhos Não se Cruzaram Por Acaso
Bordô, Bruna Santos, Camila Ribeiro, Coletivo MP, Daniel Murgel, Diego Deus, Douglas Dobby, Gustavo Speridião, Lolly Lindona, Laís Amaral, Leandro Barboza, Leandro ICE, Mãe Celina de Xangô, Maurício Hora, Oficina do Prelo, Raphael Couto, Rainha F., Slam das Minas, Teresa Speridião, Thiago Haule e Yhuri Cruz.
Projeto de curadoria e pesquisa
Instituto Inclusartiz, RJ/BR
Mar. 2022
Texto Curatorial
O ano é
2021. O Instituto Inclusartiz firma seu espaço no bairro da Gamboa,
instalando-se em um casarão cujas estruturas já abrigaram uma fábrica de
tecidos e um depósito. A construção relata em seus tijolos de barro e em suas
vigas de madeira as mesmas narrativas que Pierre Verger e Augusto Malta outrora
selaram em suas imagens. A mesma situação se repete, em tempos e condições
diferentes, em inúmeros outros espaços de cultura e ateliês pela região. Tendo
em vista a história deste território, que urge em ser rememorada,
e sua atual transformação, que encontros estão se dando neste momento e quais
outros são possíveis?
A presente exposição busca pensar a região a partir da proposta do encontro, propiciado pelo cruzamento entre artistas, curadoria, pesquisa e instituição. Como figura de imagem, elegemos a Praça da Harmonia: localizada em frente a este prédio, ela é o ponto de interseção das vielas que a rodeiam. Torna-se, desta maneira, uma alegoria norteadora para a reflexão sobre a potência das aproximações propiciadas nesta coletiva. Tomando as transformações e passagens como força-motora para lembrar o passado do lugar que ocupamos hoje, pretendemos apresentar as práticas artísticas aqui selecionadas como um ponto do fio da história cuja trama ainda se tece.
“Gamboa: nossos caminhos não se cruzaram por acaso” apresenta alguns nomes essenciais para entender as relações históricas e sociais da região: desde a produção multifacetada e afetuosa de Tia Lúcia à pintura de cenas do cotidiano de Heitor dos Prazeres, passando pela fotografia documental do alagoano Augusto Malta e pelos estudos da forma feitos por Rossini Perez, artista potiguar radicado no Rio. O estudo e seleção de seus expoentes revela que a região é resultado da contribuição e força proporcionadas não apenas por aqueles que nasceram e foram criados aqui, mas também pelos que tiveram uma escuta sensível e buscaram compreender a história do território em sua pesquisa, ampliando as noções de pertencimento. Por isso, a coletiva se abre para receber artistas que: 1) são “crias” daqui; 2) ocupam esta área por meio de espaços de trabalho, como ateliês ou casas; 3) por aqui passaram e produziram obras que se relacionam com a Gamboa e seu entorno.
Abre-se também o entendimento acerca destes encontros para uma leitura histórica, entendendo que as feridas ocasionadas por essas passagens ainda estão abertas. Decerto, uma das mais profundas instala-se sobre o solo que pisamos – o mesmo pisado por milhões de corpos negros sequestrados do continente africano, aportados nesta região entre os séculos XVIII e XIX. Das barricadas construídas durante a Revolta da Vacina à folia-política promovida pelo bloco carnavalesco local Prata Preta, que rememora em cada cortejo a insurgência revolucionária do capoeirista e estivador Horácio José da Silva. Dos combatentes de guerra que viram na planta favelao ponto de semelhança entre Canudos e o Morro da Providência às reformas higienistas e aspirantes a ares europeus de Pereira Passos. Da luz do dia conhecida por Beth Carvalho à força de Heitor dos Prazeres, que nomeou esta região de Pequena África, enxergando o binômio trauma/resistência aqui pulsante. Da lembrança dos ventos de além-mar que chegavam na areia do porto a poucos metros de distância e dos tantos trabalhadores que tiraram um cochilo na Praça da Harmonia após um extenuante dia de trabalho. E, claro, do nome Gamboa, que faz referência direta à presença de pescadores que, ao longo do século XIX, armavam “gamboas”, pequenos braços de mar que serviam como armadilhas para capturar peixes. Trata-se, enfim, de um legado firmado a sangue, suor e garra, carregado pelos artistas aqui reunidos ao elegerem a região como, senão sua casa, sua parada.
“Nossos caminhos não se cruzaram por acaso. Os maiores especialistas em sorrisos estão aqui”. Retirada de um dos diversos cadernos aos quais a artista Tia Lúcia (1933-2018) se dedicou a escrever e ilustrar ao longo de sua vida, esta citação foi encontrada no decorrer do processo de pesquisa desta exposição e, desde então, não houve dúvidas de que este encontro com o texto foi um de seus presentes. Conforme evidenciado pelo título, a coletiva elege a consagrada moradora do Morro do Pinto como sua madrinha. Esta escolha ocorre não apenas pela excelência de sua produção multifacetada, mas também pela integridade de sua crença no encontro como objetivo final do fazer artístico: grande parte de sua obra foi distribuída, por decisão da artista, entre familiares, amigos e vizinhos da comunidade em que morava. Ainda que sua absorção pelos museus tenha ocorrido tardiamente, Tia Lúcia construiu uma rede que atravessa e irrompe qualquer estrutura de validação para construir a sua própria. Sabia que os pares que a interessavam eram outros. Hoje, buscamos validar seu trabalho e o de todos os artistas presentes em um sistema simbólico, sabendo que aquele outro sistema, afetivo, já está consolidado e transborda aqui, agora. Deste modo, abrimo-nos a mirar outras vistas, sem esquecer que aquela contemplada no alto da lage do morro é, afinal, a mais bonita de todas.
A presente exposição busca pensar a região a partir da proposta do encontro, propiciado pelo cruzamento entre artistas, curadoria, pesquisa e instituição. Como figura de imagem, elegemos a Praça da Harmonia: localizada em frente a este prédio, ela é o ponto de interseção das vielas que a rodeiam. Torna-se, desta maneira, uma alegoria norteadora para a reflexão sobre a potência das aproximações propiciadas nesta coletiva. Tomando as transformações e passagens como força-motora para lembrar o passado do lugar que ocupamos hoje, pretendemos apresentar as práticas artísticas aqui selecionadas como um ponto do fio da história cuja trama ainda se tece.
“Gamboa: nossos caminhos não se cruzaram por acaso” apresenta alguns nomes essenciais para entender as relações históricas e sociais da região: desde a produção multifacetada e afetuosa de Tia Lúcia à pintura de cenas do cotidiano de Heitor dos Prazeres, passando pela fotografia documental do alagoano Augusto Malta e pelos estudos da forma feitos por Rossini Perez, artista potiguar radicado no Rio. O estudo e seleção de seus expoentes revela que a região é resultado da contribuição e força proporcionadas não apenas por aqueles que nasceram e foram criados aqui, mas também pelos que tiveram uma escuta sensível e buscaram compreender a história do território em sua pesquisa, ampliando as noções de pertencimento. Por isso, a coletiva se abre para receber artistas que: 1) são “crias” daqui; 2) ocupam esta área por meio de espaços de trabalho, como ateliês ou casas; 3) por aqui passaram e produziram obras que se relacionam com a Gamboa e seu entorno.
Abre-se também o entendimento acerca destes encontros para uma leitura histórica, entendendo que as feridas ocasionadas por essas passagens ainda estão abertas. Decerto, uma das mais profundas instala-se sobre o solo que pisamos – o mesmo pisado por milhões de corpos negros sequestrados do continente africano, aportados nesta região entre os séculos XVIII e XIX. Das barricadas construídas durante a Revolta da Vacina à folia-política promovida pelo bloco carnavalesco local Prata Preta, que rememora em cada cortejo a insurgência revolucionária do capoeirista e estivador Horácio José da Silva. Dos combatentes de guerra que viram na planta favelao ponto de semelhança entre Canudos e o Morro da Providência às reformas higienistas e aspirantes a ares europeus de Pereira Passos. Da luz do dia conhecida por Beth Carvalho à força de Heitor dos Prazeres, que nomeou esta região de Pequena África, enxergando o binômio trauma/resistência aqui pulsante. Da lembrança dos ventos de além-mar que chegavam na areia do porto a poucos metros de distância e dos tantos trabalhadores que tiraram um cochilo na Praça da Harmonia após um extenuante dia de trabalho. E, claro, do nome Gamboa, que faz referência direta à presença de pescadores que, ao longo do século XIX, armavam “gamboas”, pequenos braços de mar que serviam como armadilhas para capturar peixes. Trata-se, enfim, de um legado firmado a sangue, suor e garra, carregado pelos artistas aqui reunidos ao elegerem a região como, senão sua casa, sua parada.
“Nossos caminhos não se cruzaram por acaso. Os maiores especialistas em sorrisos estão aqui”. Retirada de um dos diversos cadernos aos quais a artista Tia Lúcia (1933-2018) se dedicou a escrever e ilustrar ao longo de sua vida, esta citação foi encontrada no decorrer do processo de pesquisa desta exposição e, desde então, não houve dúvidas de que este encontro com o texto foi um de seus presentes. Conforme evidenciado pelo título, a coletiva elege a consagrada moradora do Morro do Pinto como sua madrinha. Esta escolha ocorre não apenas pela excelência de sua produção multifacetada, mas também pela integridade de sua crença no encontro como objetivo final do fazer artístico: grande parte de sua obra foi distribuída, por decisão da artista, entre familiares, amigos e vizinhos da comunidade em que morava. Ainda que sua absorção pelos museus tenha ocorrido tardiamente, Tia Lúcia construiu uma rede que atravessa e irrompe qualquer estrutura de validação para construir a sua própria. Sabia que os pares que a interessavam eram outros. Hoje, buscamos validar seu trabalho e o de todos os artistas presentes em um sistema simbólico, sabendo que aquele outro sistema, afetivo, já está consolidado e transborda aqui, agora. Deste modo, abrimo-nos a mirar outras vistas, sem esquecer que aquela contemplada no alto da lage do morro é, afinal, a mais bonita de todas.