Misterioso Laço
Gilson Plano
Curadoria
Galeria Quadra
Abr. 2024
Texto Curatorial
“A verdade tem sempre um fundo falso onde se esconde uma palavra
ou evento essencial. Aí reside a nossa integridade, o nó dos laços,
o encontro das forças, o centro do secreto, o verdadeiro Nome nosso.”
[Osman Lins][1]
Amarrar um laço entre os dedos para lembrar o que não deve ser esquecido. A força do nó desacelera o fluxo sanguíneo, vasos se contraem e se espremem na esperança de que o segredo confiado ao elemento físico que envolve o corpo nos encontre no futuro. Se a história é um grande laço de lembrança, podemos imaginar uma teia de fios e nós — complexos e em constante expansão —, cujas pontas soltas e linhas aparentes desafiam a perspectiva de um trajeto único, fazendo de tais nós cegos menos um desafio da descoberta do percurso do que a contemplação do emaranhado geral. Esse parece ter sido um dos maiores desafios contemporâneos para a revisão da relação do humano com a história, com a natureza, com a vida e com as epistemes. Como escreve Denise Ferreira da Silva, a compreensão de um ecossistema emaranhado implica perceber a “condição incerta sob a qual tudo aquilo que existe é uma expressão singular de cada um e de todos os outros existentes efetivos ou virtuais do universo”[2]. Tal posição se configura como uma resposta a uma percepção humanista e eurocentrada do entorno, cujo discurso enraizado nas ciências individualizou o mundo à imagem e diferença do homem, entendido tal qual topo da cadeia pensante — portanto fio distinto, que não cede à ordem da entropia do nó.Paradoxalmente, é sobre tais bases que a biologia descobre que nós somos formados por enlaces espiralares que dão forma ao nosso genoma.
Se hoje a ideia de um sistema vital descentrado e relacional, emaranhado, nos parece uma máxima incontornável da vida, tal qualidade é elegida pelo goianense Gilson Plano como um gesto irredutível das obras que integram a exposição “Misterioso Laço”. Entrecruzando o pictórico e o objetual e propondo um embaralhamento ao redor de tais noções, Plano se vale de elementos como hastes de ferro e tinta em encáustica para propor formas materiais que buscam o seu equilíbrio a partir de um nó. Confere, assim, vida aos seres estáveis que adquirem sua autonomia na proposta de um enlace, espelhando a conquista da emancipação da experiência humana. Nas palavras do artista: “Um dos primeiros desafios da infância se dá no aprender a construir um nó duplo nos pés; por meio de tentativas e erros, este é um laço que marca um sinal de autonomia”. Nesse sentido, o grupo de vidas aqui presentes espelham a beleza de novos viventes que aprendem a caminhar e habitar o mundo. Entre tropeços e poses trôpegas, há aqueles que já se aventuram a se exibir ou mesmo a dançar. Com efeito, é mobilizada a criação de um conjunto de coreografias que convidam a um balé, tanto individual quanto coletivo, capaz de expandir o espaço. Criam um palco para chamar de seu.
Entre tais seres, o primeiro grupo se apresenta ao centro da sala. Trata-se de amarrações feitas em ferro, porcelana, concreto e encáustica, cujo ponto nevrálgico de sua profusão se encontra em nós que interligam dois ou mais objetos. Esquálidos, desenham no ar formas sinuosas com seus braços, pernas e torsos, às vezes em cinza, que remete ao concreto que dá ao objeto sua corpulência, e tons de cor que frequentemente variam em paletas saturadas. Essas variações são visivelmente demarcadas ao longo da peça, sem uso de recursos de degradê ou gradação cromática; e de súbito fluem entre texturas, cores e reflexividades em um exímio jogo morfológico. O conjunto de esculturas faz do seu próprio revestimento material de seu corpo uma artimanha para esconder o seu esqueleto e formação, conservando tal segredo como a magia que as mantém vivas, pois dispensam qualquer narrativa fundacional para a sua autonomia. São porque são, ainda que a memória de seu nascimento se conserve dentro do invólucro. Não escondem, contudo, a interação interespécies das quais dependem: seu corpo é moldado entre os ritmos de declives e acúmulos, revelando a mão do criador que as esculpiu.
Em sequência, um grupo de objetos em concreto e encáustica forma ilhotas que, se por um lado, lembram vistas panorâmicas de planetas vistos do espaço, por outro parecem refletir sobre o vazio e a escuridão. Se tal materialidade é comum na produção de Plano, que em obras como Calor sem luz e Depois d’agua, a terra faz da qualidade abstrata da cera quente um modo de criar pontos de calor que se assemelham às ilhas terrestres e formações geológicas, o uso da encáustica fria na série de trabalhos apresentados aqui cria uma zona de espera e interesse pela penumbra que parece esfriar a temperatura do recinto, propondo uma equalização com o tom das outras peças, em geral frutos de processos envolvendo o derretimento de maneira direta. Nesse terreno incerto, tais espelhos negros convidam o espectador a olhar e aguardar a emergência do novo.
O terceiro e último grupo de trabalhos é fruto de uma experimentação em desenho e pintura que recorta o suporte e, em seguida, realiza um segundo corte, seccionando as áreas de cor das peças em quadrantes. Produzidas em encáustica, tinta a óleo em bastão, madeira e aço, elas são preenchidas por blocos de cor que alteram suas tonalidades e técnica ao passo que se encostam. Gilson utiliza o corte como maneira de construir pontas a serem entrelaçadas na experiência do traço. Revestidas em cor, elas borram distinções entre o primeiro e o segundo plano, do que entra e o que envolve. Em grandes formatos, as chapas de madeira e tinta envolvem os formam, as peças Os presentes, Os dançantes e As direções recusam o peso de sua realidade material e flutuam no ar, gozando a beleza da vida e deixando suas extremidades fluírem soltas.
Em “Misterioso Laço”, Gilson afirma seu desejo de habitar a abstração fundamentado em uma relação ampla e direta com o mundo e seus materiais. Parte de uma nova geração de artistas que busca revisitar a história brasileira e trabalhá-la segundo uma ordem da experiência fenomenológica da diferença. Sua prática orienta novas configurações de sentido que ultrapassam a mera exposição crítica das mazelas sociais, em seu lugar tomam forma proposições de experimentação artísticas orientadas sobre o respeito às sabedorias e tecnologias ancestrais, capazes não só de re-encantar o nosso mundo, mas de criar outros. Dessa maneira, o presente proposto por nomes como o goiano é não apenas uma religação com um passado esquecido e subalternizado, mas também uma ruptura com uma orientação histórica linear. Passa a tratar de uma atualidade especulativa. Nas palavras de Plano: “Tão apreciado […] que muitas vezes o presente é apenas o invólucro, uma fantasia que guarda espaços vazios destituídos de alma”. Tais artistas, por sua vez, vislumbram os invólucros de um presente que cabe a nós imaginar e rasgar, na ânsia de desatar o complexo e poderoso laço que precede a alegria de abrir novos presentes.
Lucas Albuquerque
[1] LINS, Osman. Avalovara. São Paulo: Companhia das Letras, 1995, p. 194.
[2] ‘A virada vegetal’, Emanuelle Coccia. p. 4
ou evento essencial. Aí reside a nossa integridade, o nó dos laços,
o encontro das forças, o centro do secreto, o verdadeiro Nome nosso.”
[Osman Lins][1]
Amarrar um laço entre os dedos para lembrar o que não deve ser esquecido. A força do nó desacelera o fluxo sanguíneo, vasos se contraem e se espremem na esperança de que o segredo confiado ao elemento físico que envolve o corpo nos encontre no futuro. Se a história é um grande laço de lembrança, podemos imaginar uma teia de fios e nós — complexos e em constante expansão —, cujas pontas soltas e linhas aparentes desafiam a perspectiva de um trajeto único, fazendo de tais nós cegos menos um desafio da descoberta do percurso do que a contemplação do emaranhado geral. Esse parece ter sido um dos maiores desafios contemporâneos para a revisão da relação do humano com a história, com a natureza, com a vida e com as epistemes. Como escreve Denise Ferreira da Silva, a compreensão de um ecossistema emaranhado implica perceber a “condição incerta sob a qual tudo aquilo que existe é uma expressão singular de cada um e de todos os outros existentes efetivos ou virtuais do universo”[2]. Tal posição se configura como uma resposta a uma percepção humanista e eurocentrada do entorno, cujo discurso enraizado nas ciências individualizou o mundo à imagem e diferença do homem, entendido tal qual topo da cadeia pensante — portanto fio distinto, que não cede à ordem da entropia do nó.Paradoxalmente, é sobre tais bases que a biologia descobre que nós somos formados por enlaces espiralares que dão forma ao nosso genoma.
Se hoje a ideia de um sistema vital descentrado e relacional, emaranhado, nos parece uma máxima incontornável da vida, tal qualidade é elegida pelo goianense Gilson Plano como um gesto irredutível das obras que integram a exposição “Misterioso Laço”. Entrecruzando o pictórico e o objetual e propondo um embaralhamento ao redor de tais noções, Plano se vale de elementos como hastes de ferro e tinta em encáustica para propor formas materiais que buscam o seu equilíbrio a partir de um nó. Confere, assim, vida aos seres estáveis que adquirem sua autonomia na proposta de um enlace, espelhando a conquista da emancipação da experiência humana. Nas palavras do artista: “Um dos primeiros desafios da infância se dá no aprender a construir um nó duplo nos pés; por meio de tentativas e erros, este é um laço que marca um sinal de autonomia”. Nesse sentido, o grupo de vidas aqui presentes espelham a beleza de novos viventes que aprendem a caminhar e habitar o mundo. Entre tropeços e poses trôpegas, há aqueles que já se aventuram a se exibir ou mesmo a dançar. Com efeito, é mobilizada a criação de um conjunto de coreografias que convidam a um balé, tanto individual quanto coletivo, capaz de expandir o espaço. Criam um palco para chamar de seu.
Entre tais seres, o primeiro grupo se apresenta ao centro da sala. Trata-se de amarrações feitas em ferro, porcelana, concreto e encáustica, cujo ponto nevrálgico de sua profusão se encontra em nós que interligam dois ou mais objetos. Esquálidos, desenham no ar formas sinuosas com seus braços, pernas e torsos, às vezes em cinza, que remete ao concreto que dá ao objeto sua corpulência, e tons de cor que frequentemente variam em paletas saturadas. Essas variações são visivelmente demarcadas ao longo da peça, sem uso de recursos de degradê ou gradação cromática; e de súbito fluem entre texturas, cores e reflexividades em um exímio jogo morfológico. O conjunto de esculturas faz do seu próprio revestimento material de seu corpo uma artimanha para esconder o seu esqueleto e formação, conservando tal segredo como a magia que as mantém vivas, pois dispensam qualquer narrativa fundacional para a sua autonomia. São porque são, ainda que a memória de seu nascimento se conserve dentro do invólucro. Não escondem, contudo, a interação interespécies das quais dependem: seu corpo é moldado entre os ritmos de declives e acúmulos, revelando a mão do criador que as esculpiu.
Em sequência, um grupo de objetos em concreto e encáustica forma ilhotas que, se por um lado, lembram vistas panorâmicas de planetas vistos do espaço, por outro parecem refletir sobre o vazio e a escuridão. Se tal materialidade é comum na produção de Plano, que em obras como Calor sem luz e Depois d’agua, a terra faz da qualidade abstrata da cera quente um modo de criar pontos de calor que se assemelham às ilhas terrestres e formações geológicas, o uso da encáustica fria na série de trabalhos apresentados aqui cria uma zona de espera e interesse pela penumbra que parece esfriar a temperatura do recinto, propondo uma equalização com o tom das outras peças, em geral frutos de processos envolvendo o derretimento de maneira direta. Nesse terreno incerto, tais espelhos negros convidam o espectador a olhar e aguardar a emergência do novo.
O terceiro e último grupo de trabalhos é fruto de uma experimentação em desenho e pintura que recorta o suporte e, em seguida, realiza um segundo corte, seccionando as áreas de cor das peças em quadrantes. Produzidas em encáustica, tinta a óleo em bastão, madeira e aço, elas são preenchidas por blocos de cor que alteram suas tonalidades e técnica ao passo que se encostam. Gilson utiliza o corte como maneira de construir pontas a serem entrelaçadas na experiência do traço. Revestidas em cor, elas borram distinções entre o primeiro e o segundo plano, do que entra e o que envolve. Em grandes formatos, as chapas de madeira e tinta envolvem os formam, as peças Os presentes, Os dançantes e As direções recusam o peso de sua realidade material e flutuam no ar, gozando a beleza da vida e deixando suas extremidades fluírem soltas.
Em “Misterioso Laço”, Gilson afirma seu desejo de habitar a abstração fundamentado em uma relação ampla e direta com o mundo e seus materiais. Parte de uma nova geração de artistas que busca revisitar a história brasileira e trabalhá-la segundo uma ordem da experiência fenomenológica da diferença. Sua prática orienta novas configurações de sentido que ultrapassam a mera exposição crítica das mazelas sociais, em seu lugar tomam forma proposições de experimentação artísticas orientadas sobre o respeito às sabedorias e tecnologias ancestrais, capazes não só de re-encantar o nosso mundo, mas de criar outros. Dessa maneira, o presente proposto por nomes como o goiano é não apenas uma religação com um passado esquecido e subalternizado, mas também uma ruptura com uma orientação histórica linear. Passa a tratar de uma atualidade especulativa. Nas palavras de Plano: “Tão apreciado […] que muitas vezes o presente é apenas o invólucro, uma fantasia que guarda espaços vazios destituídos de alma”. Tais artistas, por sua vez, vislumbram os invólucros de um presente que cabe a nós imaginar e rasgar, na ânsia de desatar o complexo e poderoso laço que precede a alegria de abrir novos presentes.
Lucas Albuquerque
[1] LINS, Osman. Avalovara. São Paulo: Companhia das Letras, 1995, p. 194.
[2] ‘A virada vegetal’, Emanuelle Coccia. p. 4